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Tem cadastro na loja? O que está por trás da não tão inocente pergunta?

Questões como esta podem parecer invasivas – e são–, mas cabe ao consumidor começar a estabelecer relações mais justas de consumo
Você não sabe, mas andam falando de você por aí
Você não sabe, mas andam falando de você por aí - Freepik

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Fabio Pimentel

No ano de 2012, uma adolescente americana recebeu um e-mail de um grande varejista do país, oferecendo cupons de desconto em diversos artigos para bebês. Desconfortável ao ver aquela mensagem, o pai da menina ligou ao varejista e se queixou da situação, no que lhe foi explicado que os cupons enviados a cada cliente eram selecionados levando-se em consideração seu perfil de consumo.

Sem compreender que consumo era esse, o atendente detalhou para o pai uma extensa lista de itens normalmente utilizados por mulheres grávidas e que haviam sido adquiridos com o cartão de crédito da filha, fazendo com que a empresa presumisse que uma criança estaria a caminho. E foi assim que aquele pai descobriu que se tornaria avô em breve. 

Histórias como essa, que já ultrapassam uma década, revelam uma verdade bastante inconveniente.

Cada vez menos detemos o controle das informações que terceiros possuem a nosso respeito. E isso, naturalmente, não parece ser nada bom.

Dados

É bem verdade que o funcionamento das empresas e dos governos sempre geraram dados. Porém, se antes eles eram vistos como um resultado de suas atividades, ou seja, subprodutos sem muito valor ou utilidade aparente, a realidade atual é bastante diferente.

Dados pessoais deixaram de ser meros resultados de processos industriais, comerciais e até mesmo administrativos para se tornarem recursos, isto é, insumos para novos processos econômicos, atraindo para si um conjunto de leis e de preocupações próprias. 

Dentre essas preocupações está justamente aquela relacionada à criação de bancos de dados pessoais. Desde a década de 1970, a Alemanha já editara leis com o objetivo de regular a formação desses bancos, que serviram a propósitos nefastos no passado daquele país.

Defesa do consumidor

O Brasil, no mesmo sentido, já desde 1990, com o Código de Defesa do Consumidor, tentou regular, ainda que timidamente, a criação desautorizada de bancos de dados contendo informações de consumidores.  

Os últimos anos foram marcados pela ascensão de diversos regimes legais de proteção de dados pessoais mundo afora. Estima-se que cerca de 71% dos países possuam algum tipo de legislação nesse sentido, inclusive em nações cujos regimes políticos muitas vezes acabem se distanciando dos predicados do estado democrático de direito.

No entanto, essa expressiva proporção ainda não é suficiente para que possamos afirmar, com razoável convicção, que exista efetivamente a prática de uma sociedade que prestigia a proteção de dados. 

No Brasil, cidadãos são diuturnamente desafiados a não franquearem seus dados em troca daquilo que seriam aparentes vantagens em fazê-lo. Desde o CPF na farmácia, que assegura um desconto em relação ao preço original, até o cadastro em uma loja, com a promessa do aceite da troca de produtos – algo que a legislação consumerista falhou ao não prever – e de outros benefícios, como descontos em compras no mês de aniversário. 

É correto afirmar que existe uma enorme oportunidade para as empresas que se disponham a liderar a implementação consciente e responsável dos predicados da Lei Geral de Proteção de Dados em suas práticas econômicas. 

Reputação e respeito

Posicionar sua estratégia empresarial dentro de um patamar de efetivo respeito aos dados pessoais – e a seus titulares – pode contribuir para a criação e manutenção de uma reputação diferenciada, refletindo-se no aumento do volume de negócios e, principalmente, na atração de investidores interessados no aporte de capital em atividades socialmente responsáveis. 

Contudo, quem está verdadeiramente inclinado a dar o primeiro passo? É importante reconhecer que não será fácil abdicar de práticas já tão arraigadas, especialmente em um ambiente de negócios tão competitivo e no qual elevar esse patamar, adotando melhores práticas, pode significar, num primeiro momento, perder capilaridade e alcance de clientela para concorrentes. 

É nesse contexto que a ampliação da consciência da sociedade pode catalisar as coisas.

Vigilância

Quanto mais vigilantes e atentos os cidadãos estiverem, mais exigirão daqueles de quem tomam produtos e serviços uma conduta escorreita em relação aos seus dados pessoais. O coeficiente cultural e a sua consequente mudança de paradigma em matéria de proteção de dados pressionarão toda a cadeia produtiva a rever más práticas, sem dúvida, embora não seja possível ainda precisar quando isso começará a acontecer.

Por trás de uma inocente pergunta – tem cadastro na loja? – pode haver uma capciosa intenção.

Chegará o tempo em que questões como essa não terão mais lugar numa relação de consumo. Ao revés, poderão até soar mal e ofender a quem é perguntado. Até lá, a menos que você, leitor, seja capaz de listar agora pelo menos dez lojas onde tenha cadastro, e dizer que informações estão em cada um, é muito provável que você não saiba, mas andam falando de você por aí. Pode parecer invasivo. E é. 

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Fabio Pimentel

Fábio Pimentel é doutorando em economia política pela Universidade de Lisboa, mestre em economia e gestão da inovação pela Universidade do Porto, e em administração público-privada pela Universidade de Coimbra. Advogado especializado em direito econômico, tecnologia e inovação, assessora empresas de tecnologia em assuntos estratégicos nas áreas regulatória, contenciosa e concorrencial. É sócio de Pimentel Aniceto Advogados e ex-conselheiro e membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ.

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