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Recusa de convênios para medicamento essencial fere Constituição

Pacientes não podem ser impedidos de receber atendimento necessário para manutenção de sua vida
Menina iniciou o tratamento com o rémedio após determinação do Supremo Tribunal Federal
Menina iniciou o tratamento com o rémedio após determinação do Supremo Tribunal Federal - Reprodução do Instagram

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Ana Busch e Milka Veríssimo

Júlia Maria foi diagnosticada ainda bebê com Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença rara e grave que causa a degeneração progressiva dos neurônios motores, comprometendo movimentos básicos, como engolir e respirar. O remédio capaz de salvar sua vida, o Zolgensma, custa mais de R$ 6 milhões. Em setembro do ano passado, graças à determinação de seus pais e a uma decisão judicial, ela iniciou o tratamento, custeado pelo Estado. 

“Como mãe, eu me sinto indignada, incapaz. Eu queria muito que meu filho tivesse uma qualidade de vida superior à que ele tem hoje”, diz à Agência Brasil, Aline Araújo, mãe de Miguel, de 3 anos, que também sofre de AME e não conseguiu o tratamento com Zolgensma. Miguel corre o risco de perder progressivamente suas funções motoras e, eventualmente, enfrentar complicações fatais.

A recusa desse tipo de medicamento a um paciente fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana “quando o beneficiário é impedido de receber o atendimento altamente necessário para a manutenção de sua vida”, afirma a advogada Luana Vacari, especializada em direito à saúde.


Por que isso importa?

A recusa de cobertura de medicamentos de alto custo pelos planos de saúde pode colocar em risco a vida dos pacientes, especialmente aqueles que dependem de tratamentos urgentes e específicos para sobreviver ou manter sua qualidade de vida. Quando as operadoras negam cobertura de tratamento e que constam do Rol da ANS, elas não apenas desafiam os direitos fundamentais dos pacientes, mas também os expõem a consequências graves e, muitas vezes, irreversíveis.

O +QD conversou com a especialista para entender como os beneficiários de planos de saúde podem lutar pelo direito a um tratamento digno e essencial, mesmo que de alto custo. “A operadora de saúde, agindo em sentido contrário à prescrição médica, pode colocar a vida do consumidor em risco.”


Para quem esse assunto interessa?

O tema interessa principalmente aos pacientes que enfrentam a necessidade de tratamentos caros e vitais e que dependem da cobertura dos planos de saúde para ter acesso a esses medicamentos. Também é relevante para advogados especializados em direito à saúde, formuladores de políticas públicas e às próprias operadoras de planos de saúde, que precisam adaptar suas práticas às exigências legais e às expectativas de um sistema de saúde mais justo e acessível.

+QD: Quais são os principais desafios enfrentados pelos pacientes ao solicitar a cobertura de medicamentos de alto custo pelos planos de saúde?

Luana Vacari: Em geral, ao solicitar qualquer autorização de tratamento, terapias e inclusive medicamentos de alto custo, os beneficiários de plano de saúde se deparam com inúmeros obstáculos, dentre eles negativas em virtude de “risco excluído” ou até mesmo possível carência. Devido a tais condições, as solicitações são recusadas pelo convênio, deixando o usuário sem alternativa diante da conduta abusiva praticada pela operadora de saúde.


O que é o risco excluído?

O O risco excluído refere-se a situações, condições médicas ou procedimentos que são expressamente excluídos da cobertura dos planos de saúde, ou seja, que o plano não se responsabiliza por custear. Essas exclusões devem ser claramente informadas ao consumidor no contrato.
Essa prática pode ser considerada abusiva quando exclui procedimentos obrigatórios determinados pela ANS, é apresentada de forma obscura ou cria um desequilíbrio contratual excessivo que prejudique o acesso do consumidor a tratamentos de saúde essenciais. A abusividade ocorre especialmente quando as exclusões comprometem o direito à saúde e à vida do paciente, contrariando a legislação e os princípios do Código de Defesa do Consumidor.

+QD: Quais são os critérios utilizados pelos planos de saúde para decidir se um medicamento de alto custo deve ser coberto ou não?

Luana Vacari: Ao receber a solicitação de cobertura de um medicamento de alto custo, a operadora de saúde vai avaliar se o fármaco e sua utilização atendem aos requisitos constantes do Rol de Procedimentos da ANS (Agência Nacional de Saúde). Caso a indicação para o tratamento estiver dentro das diretrizes de uso do Rol, então a solicitação será validada e o medicamento coberto. Mas isso só vai ocorrer se o contrato tiver sido firmado posteriormente à edição da Lei nº 9.656/98 ou tiver sido adaptado a ela. Do contrário, o pedido será certamente negado.

O pedido de cobertura do medicamento de alto custo será recusado sempre que o uso pretendido não estiver dentro das diretrizes preconizadas pelo Rol da ANS, ou seja, quando a indicação para a administração do fármaco não estiver na bula do medicamento. Se o tratamento for considerado experimental, será considerado como risco excluído. 

+QD: Qual é o papel do Ministério da Saúde e da ANS na proteção dos direitos dos pacientes em relação à cobertura de medicamentos de alto custo?

Luana Vacari: A Agência Nacional de Saúde cumpre papel de fundamental importância no sentido de fiscalizar a atuação das operadoras de saúde. Foi com esse intuito que foi elaborado um Rol de Procedimentos, onde constam procedimentos, cirurgias, terapias e medicamentos de coberturas mínimas obrigatórias.

Já o Ministério da Saúde tem atuação junto ao SUS, com plano de governo para garantir a atualização do Rename, que é uma lista de medicamentos a serem distribuídos pelo Estado, o qual contempla o mínimo necessário para a manutenção da saúde da população.

+QD: Em que situações a negativa de cobertura por parte do plano de saúde pode ser considerada uma violação dos direitos do paciente?

Luana Vacari: A negativa ofertada pela operadora de saúde pode ser considerada abusiva quando deixa de atender aos direitos do consumidor enquanto paciente. O médico que atende o paciente é um profissional apto a prescrever a melhor terapêutica para seu paciente.

A operadora de saúde, agindo em sentido contrário, pode colocar a vida do consumidor em risco.

E por isso, uma negativa de cobertura de medicamento de alto custo pode ser considerada verdadeira violação aos direitos do beneficiário, quando existe prescrição médica válida para seu caso.

+QD: Como o princípio da dignidade da pessoa humana influencia a interpretação das obrigações dos convênios médicos?

Luana Vacari: Exatamente quando o beneficiário é impedido de receber o atendimento altamente necessário para a manutenção de sua vida, mesmo diante de prescrição médica categórica para uso de medicamento único que pode garantir sua sobrevivência.

Sendo contratante e consumidor de plano de saúde, uma negativa de tratamento impede que seja atingida a finalidade precípua do contrato, assim como sua respectiva função social que é a garantia da prestação dos serviços médico-hospitalares. Isso afeta diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, já que inviabiliza a sobrevivência digna e livre de efeitos deletérios ocasionados pela enfermidade do paciente.


O que é o princípio da dignidade da pessoa humana?

O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos centrais da Constituição Federal do Brasil e assegura que todos os direitos e garantias fundamentais devem ser aplicados de forma a proteger o valor intrínseco de cada indivíduo.
Esse princípio exige que todas as pessoas sejam tratadas com respeito, igualdade e justiça, garantindo-lhes as condições necessárias para uma vida digna. Ele serve como base para a criação de leis, políticas públicas e decisões judiciais, orientando a proteção dos direitos fundamentais e o combate a práticas que possam violar a dignidade humana.

+QD: Pode nos dar exemplos de decisões judiciais que reforçam a obrigatoriedade dos planos de saúde em cobrir medicamentos de alto custo?

Luana Vacari: Há inúmeras decisões. Em muitas delas, os fundamentos encontram resguardo no fato de que o Rol da ANS teve sua taxatividade mitigada em virtude do advento da Lei nº 14.454/2022 [que estabeleceu que o Rol deve ser considerado como um rol de cobertura mínima pelos planos de saúde, permitindo a inclusão de tratamentos e procedimentos não listados desde que preencham critérios específicos, como ausência de alternativas no rol, evidências científicas de eficácia, recomendação médica, e aprovação por outras agências reguladoras internacionais.]

Vale destacar que o teor das decisões segue a linha da prescrição médica válida do fármaco, comprovação da eficácia do uso e estudos de órgãos de renome que validem essa eficácia. 

Temos decisões recentes sobre a cobertura do medicamento de alto custo Zolgensma [para tratamento da Atrofia Muscular Espinhal] por operadora de saúde, em que o Poder Judiciário conferiu o direito para uma criança de dois anos. O custo desse fármaco, hoje, está avaliado em aproximadamente R$ 6 milhões. Foi concedido o direito, uma vez que o medicamento e o respectivo uso constam do Rol da ANS.

+QD: Como os pacientes podem proceder legalmente quando têm a cobertura de um medicamento de alto custo negada pelo plano de saúde?

Luana Vacari: Ao deparar-se com negativa de cobertura de medicamento de alto custo, o beneficiário de plano de saúde deve ter em mãos a prescrição para o fármaco, exames que comprovem a doença e quitação pontual das mensalidades do convênio. Com esses documentos mínimos, a busca por um profissional especializado na área da saúde é de fundamental importância para a garantia de seus direitos junto ao Judiciário.

+QD: Quais são as principais diferenças entre a cobertura de medicamentos para doenças comuns versus doenças raras ou graves como o câncer?

Luana Vacari: Cobertura de medicamentos de alto custo sempre serão avaliadas pela operadora por meio do disposto no Rol da ANS. E geralmente os medicamentos para doenças comuns recebem negativa sob a justificativa de que podem ser facilmente adquiridos em farmácias populares, ou seja, de uma maneira ou outra, o consumidor pode se deparar com uma restrição em seu direito.

+QD: Como a judicialização da saúde impacta o sistema de saúde suplementar e os beneficiários dos planos de saúde?

Luana Vacari: Judicializar a saúde é algo muito sério, haja vista que impacta negativamente na operação dos planos de saúde, assim como na sinistralidade e nos reajustes anuais. Assim, é fundamental que, para demandar, o direito seja claro, correto e dentro dos parâmetros legais.

Entretanto, vemos que inúmeras vezes o consumidor se depara com situações que são evidentemente abusivas e devem ser combatidas com auxílio do Poder Judiciário. E ainda, vale destacar que a atuação abusiva das operadoras de saúde acaba sendo justificada por um alegado desequilíbrio econômico financeiro contratual em total detrimento da saúde do beneficiário. Sabemos que isso não corresponde à realidade atual, já que economicamente, os planos têm tido lucros ano após ano.

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Ana Busch

Ana Busch é jornalista, com mais de 30 anos de experiência em Redações e sócia do +QD. Em 1999, fundou a Folha Online, que dirigiu até a integração com a Redação do jornal impresso. Também foi Diretora de Redação da Bússola, na Exame. Fundou e dirige a TAMB Conteúdo Estratégico.

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