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Biometria e proteção de dados: desafios na era digital

Os desafios da biometria de íris na era digital incluem segurança, privacidade e conformidade legal
Biometria e proteção de dados levantam discussões sobre privacidade e segurança
Biometria e proteção de dados levantam discussões sobre privacidade e segurança - Freepik

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Lorena Botelho

A coleta de dados biométricos se consolidou como uma ferramenta central na sociedade digital de 2025, mas também se tornou um dos maiores pontos de tensão entre inovação tecnológica e direitos fundamentais. Projetos como o da World Network, anteriormente conhecida como Worldcoin, ilustram com clareza essa complexa interseção. A iniciativa é liderada por Sam Altman, CEO da OpenAI. Ela já verificou dez milhões de usuários por meio de dispositivos chamados orbs.

Esses dispositivos capturam a imagem da íris para criar um ‘World ID’. Esse identificador único promete autenticar a individualidade humana. Ele a diferencia de robôs ou inteligências artificiais. No entanto, surgem questões alarmantes sobre segurança, privacidade e o impacto socioeconômico dessa tecnologia.


Por que isso importa?

A coleta de dados biométricos, especialmente por iniciativas como o World ID, importa porque envolve o equilíbrio entre inovação tecnológica e proteção dos direitos individuais. Interessa a governos, empresas de tecnologia, especialistas em privacidade e consumidores que se preocupam com a segurança e as implicações éticas dessa coleta massiva.

O World ID apresenta o modelo como um sistema descentralizado de autenticação, fundamentado em princípios de Privacy by Design. Ele usa tecnologias avançadas, como a computação multipartidária segura (Secure Multiparty Computation – SMPC) e provas de conhecimento zero (Zero-Knowledge Proofs – ZKPs).

Essas tecnologias protegem os dados biométricos dos usuários e asseguram sua singularidade. A minimização de dados é um dos pilares centrais dessa abordagem. Ela promete coletar apenas as informações estritamente necessárias, excluindo identificadores pessoais como nome ou endereço. No entanto, mesmo com essas proteções, os desafios técnicos e éticos da coleta e do uso de dados biométricos expõem fragilidades. Elas exigem uma análise aprofundada.


Para quem esse assunto interessa?

Esse tema é relevante para qualquer pessoa que use tecnologias digitais, já que as ferramentas biométricas podem impactar a forma como interagimos online. Profissionais de privacidade, advogados e organizações de defesa dos direitos humanos também devem se preocupar com os riscos à liberdade individual e à dignidade humana envolvidos.

Riscos jurídicos

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil, classifica os dados biométricos como sensíveis, impondo requisitos rigorosos para seu tratamento. O consentimento explícito e inequívoco do titular, a necessidade de proporcionalidade e a transparência no uso são exigências indispensáveis. No entanto, sistemas como o World ID apresentam complexidade tecnológica. Isso dificulta o pleno entendimento por parte do titular e compromete a transparência e a autonomia informacional.

Além disso, a irrevogabilidade dos dados biométricos coloca em evidência uma vulnerabilidade única. Senhas ou números de identificação podem ser substituídos em caso de vazamento, mas um padrão de íris comprometido expõe o titular a riscos permanentes. Esse cenário torna essencial que sistemas como o World ID implementem medidas robustas de segurança. Eles devem realizar revisões regulares de seus mecanismos de proteção, pois as técnicas usadas por agentes maliciosos evoluem constantemente.

Outro ponto crítico reside no consentimento como base legal para a coleta de dados biométricos. No caso do World ID, o incentivo financeiro atrelado à adesão, por meio de tokens WLD, levanta questionamentos sobre a genuinidade desse consentimento. Populações economicamente vulneráveis podem ver a troca de dados sensíveis por benefícios financeiros como exploração econômica.

Isso viola princípios fundamentais da LGPD, como a liberdade de escolha e a dignidade da pessoa humana. Essa prática compromete a autonomia dos titulares e reforça desigualdades estruturais. Ela amplia o fosso entre quem pode optar conscientemente por participar e quem é pressionado economicamente a fazê-lo.

Desafios técnicos e éticos

A escolha da íris como dado biométrico base para o World ID é justificada por sua precisão e dificuldade de falsificação. Comparada a impressões digitais ou reconhecimento facial, a íris resiste mais a tentativas de fraude. Ela é menos suscetível a replicações a partir de bases públicas ou superfícies físicas. Contudo, essa vantagem tecnológica não elimina os desafios éticos e técnicos associados ao seu uso em larga escala.

Um dos principais entraves é a dependência de uma infraestrutura especializada. O uso dos orbs como dispositivos exclusivos para a captura de dados limita a acessibilidade do sistema, especialmente em regiões subdesenvolvidas. Essa barreira tecnológica não apenas compromete a inclusão, mas também perpetua desigualdades no acesso à identidade digital, criando uma divisão entre aqueles que têm acesso à tecnologia de ponta e aqueles que permanecem excluídos do sistema.

Além disso, a complexidade dos mecanismos de segurança implementados pelo World ID pode obscurecer os riscos reais aos titulares de dados. A computação multipartidária segura (SMPC), que fragmenta os dados biométricos em partes distribuídas entre entidades independentes, e as provas de conhecimento zero (ZKPs), que permitem autenticações sem revelar informações sensíveis, são soluções tecnológicas inovadoras. No entanto, essas práticas exigem confiança irrestrita nos operadores do sistema, uma condição que nem sempre é garantida. Em caso de falhas ou má-fé por parte das entidades responsáveis, as consequências podem ser irreversíveis.

Impactos socioeconômicos e riscos à privacidade

Apesar das garantias de anonimização e minimização de dados, o uso de biometria de íris traz consigo o risco de rastreamento ou correlação com outras bases de dados. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e outros reguladores precisam monitorar a possibilidade de uso abusivo dessas tecnologias, seja para fins comerciais, seja para controle social. O potencial de exploração dos dados biométricos em mercados secundários ou em contextos de vigilância massiva é uma preocupação legítima, especialmente em um cenário de regulação ainda em construção.

Além disso, a promessa de descentralização do World ID contrasta com o modelo de negócios subjacente ao projeto, que visa criar um sistema global de autenticação com potencial para gerar grandes volumes de dados agregados. A World Network afirma que os dados não são armazenados centralmente, mas o processo de verificação exige que a arquitetura tecnológica centralize, em última instância, o poder em torno de poucos operadores. Essa concentração de poder, mesmo que indireta, levanta questões sobre monopólios tecnológicos e o controle do acesso à identidade digital.

ANPD e os desafios globais

No contexto brasileiro, a ANPD tem a responsabilidade de estabelecer diretrizes específicas para o uso de biometria e auditar tecnologias emergentes como a utilizada pelo World ID. Além de garantir que a coleta de dados respeite os princípios da proporcionalidade e da transparência, é crucial que a ANPD promova campanhas educativas para informar os cidadãos sobre seus direitos e os riscos envolvidos no uso de biometria.

Tanto que recentemente, a ANPD determinou a suspensão de incentivos financeiros relacionados à coleta de íris em um caso envolvendo tecnologias de identificação digital.

Essa medida não apenas reflete a preocupação com práticas que podem comprometer a liberdade de escolha e a dignidade humana, mas também evidencia a problemática do chamado “consent or pay”.

A ANPD posiciona-se sobre a necessidade de avaliar sistemas como o World ID com maior rigor, especialmente no que diz respeito ao cumprimento dos princípios da LGPD.

Entretanto, a regulamentação precisa ir além do controle reativo, adotando uma postura proativa na antecipação dos riscos associados ao uso de dados biométricos. Isso inclui exigir auditorias regulares, estabelecer padrões de segurança mínimos e incentivar a criação de tecnologias que respeitem os direitos fundamentais desde a concepção. O equilíbrio entre inovação e proteção de dados não é apenas uma questão técnica, mas uma questão de governança global.

Embora a biometria de íris represente um avanço significativo na autenticação digital, seu uso levanta desafios profundos que transcendem a tecnologia. O equilíbrio entre inovação, proteção de dados e direitos humanos exige um esforço conjunto de reguladores, desenvolvedores e sociedade civil para garantir que soluções como o World ID não comprometam a privacidade e a autonomia dos indivíduos.

Foto de Lorena Botelho

Lorena Botelho

Lorena Botelho é sócia do Urbano Vitalino Advogados

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