Alexandre Mendonça
Por conta de um autodiagnosticado déficit de atenção, vários assuntos e temas me atraem, em várias áreas do conhecimento em geral e do direito em particular.
Mas, oficialmente, eu tenho um tema de estudo definido: a influência da religião na esfera pública, e no poder judiciário em particular. É a isso que devoto esforços estruturados de leitura e esse é o cantinho do constitucionalismo que me cabe, a laicidade, a secularização, e os desafios que esses conceitos impõem a uma humanidade tão ávida por conforto espiritual e respostas metafísicas.
Desenvolver esse tema significa ler trabalhos em antropologia, direito e em sociologia, desde clássicos até obras atuais, principalmente aquelas relacionadas ao que, na área de sociologia da religião, chamam de Novos Movimentos Religiosos, ou NMRs, dentre eles o neopentecostalismo.
Neopentecostalismo
O neopentecostalismo não é um fenômeno atual. Os fundadores estabeleceram a Congregação Cristã em 1910 e a Assembleia de Deus em 1911, tornando-as as duas primeiras igrejas neopentecostais brasileiras. O movimento ganhou força a partir dos anos 1950, com a chegada dos missionários da Cruzada Nacional pela Evangelização, vinculados à Igreja do Evangelho Quadrangular, marcando também o início da fragmentação do pentecostalismo. A partir disso, com outra expansão nos anos de 1970, vemos o início do desenho do cenário neopentecostal no Brasil.
Estima-se hoje que aproximadamente 30% da população brasileira seja evangélica, e nesse número temos duas populações distintas: os que já nascem na igreja, herdando a fé dos pais, e os convertidos, que são “pescados” dentre aqueles que, também por herança, professavam outra fé, geralmente uma versão popular do catolicismo.
A fé evangélica tem buscado, por diversos motivos que não cabem aqui, uma presença pública mais robusta, desafiando o que o “senso comum” da fé herdada entende por ser legítimo: a fé como questão privada, sem lugar na esfera pública. Por conta desse movimento, muitos percebem os neopentecostais como uma massa amorfa de pessoas propensas à manipulação e às crenças mágicas, sem buscar entender a complexidade desse fenômeno.
O púlpito
Num esforço de investigação, Anna Virginia Balloussier nos brinda com “O Púlpito: Fé, Poder e o Brasil dos Evangélicos”, publicado pela Editora Todavia, um livro muito bem escrito, conciso, elaborado a partir de 15 anos de trabalho da autora em reportagens e entrevistas, sem deixar de dialogar com a produção acadêmica da área.
Trata-se de um livro reportagem que traz histórias divididas em 7 temas: Conversão, Empreendedorismo, Política, Aborto, Sexo (com a divertida história da vendedora evangélica de produtos eróticos), Poder e Dízimo. Cada capítulo busca ilustrar, nas personagens que apresenta, as complexidades desse mundo que o Brasil nota cada vez mais.
Como costuma acontecer com religiões, as mulheres são as protagonistas do livro: são elas que lideram as conversões, que levam a família a converterem-se, mas que eventualmente, em algumas denominações, submetem-se a posições subalternas. A elas a complexidade da fé se apresenta em toda a sua inteireza, contrastando muitas vezes com a simplicidade da fé masculina, marcada por histórias de superação, quase como uma sequência de coachings intermináveis.
O fio condutor do livro, como não poderia deixar de ser, é a consolidação das chamadas “pautas morais”, as regras comportamentais derivadas das crenças das diferentes denominações neopentecostais – isto é, naquilo que se consegue distinguir como geral, uma vez que cada denominação apresenta algumas questões diferentes de outras.
Moralidade
Outros estudos apontam que as pautas morais têm um papel importantíssimo na atração e manutenção dos fiéis: os NMRs constroem o seu crescimento na oferta de regras simples, sem “firulas” de erudição teológica, que fazem frente à complexidade do mundo, da modernidade. Essa complexidade é percebida por muitas pessoas como um risco sério de anomia, de tragédia, e a religião aparece como tábua de salvação.
Essas regras colocam ordem no mundo neopentecostal. E o fiel passa a lutar pela manutenção dessa ordem, contra tudo aquilo que ele enxerga como ameaça. Essas posições inamovíveis são posições antipolíticas quase que por definição, porque não estão colocadas para debate.
Essa é uma questão que está muito presente no capítulo sobre política, que narra a trajetória de Sóstenes Cavalcante, o famigerado relator da “PEC do estupro”. E mostra que há uma camada extra na antipolítica exercida pelos pastores, essa derivada de uma questão organizacional comum a todas as religiões: como um líder religioso pode duvidar e negociar posições calcadas em fé?
O que está por trás
Por fim, mas agora de maneira esparsa por todo o livro, Virginia mostra como essa mesma rigidez fomenta o racismo religioso e a intolerância religiosa, que em si é um conceito em disputa: os neopentecostais consideram-se, eles mesmos, vítimas da intolerância, entendendo possuírem a liberdade de crer, mas negando a outros a liberdade de não crer. Esse é um assunto que merece aprofundamento, mas foge à proposta do livro de Virginia.
Religião é um assunto fascinante que, ao contrário do que diz o adágio, deve sim ser discutido, principalmente em um cenário moderno de pluralidade cada vez maior, onde os estudiosos do tema debatem se há ou não um movimento de secularização em andamento, entre outras questões.
O fato é que as crenças de um terço dos nossos concidadãos não devem ser simplesmente posta de lado como “bobagens”, uma vez que eles têm os mesmos direitos políticos e humanos que aqueles que não crêem temos.
O Púlpito: Fé, Poder e o Brasil dos Evangélicos
Anna Virginia Balloussier
Editora Todavia
208 páginas
R$ 69,90