Bruno Berlendis
Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído.
Romanos 3, 27
Quando você não estranha que te façam uma pergunta esquisita, é sinal de que você pode ser meio esdrúxulo. Provavelmente foi esse o caso quando de cara respondi ao questionamento (viralizado nesses dias): “Com que frequência você pensa no Império romano?” – Eu: “Alguma. Quer dizer… Vale derrocada da República?”
Aquela resposta, por breve que seja, já é um spoiler do argumento deste texto. Desacostumado das mídias sociais e suas verves, tomei a pergunta no modo “sincerão” e, ingênuo, respondi no automático, com a maior naturalidade.
Minha resposta não podia ser diferente. De fato, há décadas sou fascinado, para dizer o mínimo, pela história e literatura romanas: volta e meia verto amadoristicamente uma coisa ou outra para o português – tenho nesta semana uma reunião de um projeto de tradução do poeta/filósofo Lucrécio; já publiquei, como editor, uma adaptação juvenil de Plauto e tenho outro projeto bacanudo em preparo, há anos na gaveta. O clássico do Ronald Syme é literalmente um dos livros que moram na minha mesa de cabeceira.
Memes antifaxo
Só depois vim a saber – na ordem inversa – sobre a adoção de uma “ideologia romanizante” pelo reacionarismo dos EUA e da correspondente desconstrução por “memes antifaxo”. Agradeço ao advogado Alexandre Mendonça pelo contexto. (Mas é importante distinguir o conservador do reacionário: ponto que o jornalismo político estadunidense nem sempre recorda. Leiamos e releiamos Antonio Candido.)
O mesmo Mendonça também me situou quanto a uma predisposição a certo posicionamento político por parte de professores de direito romano cá no Brasil. Outra coisa que eu, se simplesmente não ignorava por completo, em algum momento escolhi fazê-lo.
Mais uma vez, minha postura é a do sincerão.
Garantido o ambiente de diálogo, tanto faz se o interlocutor é de baixo, de direita, de riba, de rosa ou de Portela. O que importa é o diálogo, a troca como processo pelo qual ampliamos nossa visão de mundo.
Inversão de contextos
Ora, o que mais me espanta nesse assunto é a absoluta inversão de contextos culturais e históricos – justo o que deveria ser o menos surpreendente nos dias de hoje (olha aqui meu traço ingênuo novamente).
A Larissa do Instagram se diz estupefata com o número de homens que admite pensar semanalmente ou até diariamente no Império Romano.
Ótimo. Bora bagunçar ainda mais com disputas de gênero. Red pill. Lenha na fogueira: ué, mas a etimologia de “virtude” não vem do latim vir – homem, macho, varão? – Perdão pelo sarcasmo, não deu pra evitar.
Só que… não.
Pois exatamente detratar a decadência dos costumes da Roma imperial é um dos mais batidos lugares-comuns da literatura romana – lugar-comum no sentido técnico: um motivo recorrente, um ponto que sempre volta a ser explorado literária ou argumentativamente.
O luxo, a extravagância, a desmedida opulência que corrompem o gosto, a candura e a virtude são decantados pela literatura latina como o motivo por excelência da decadência romana. Nem me meto a elaborar uma lista, porque ela seria gigantesca: engrossada não só por autores cristãos, como Tertuliano ou Agostinho, como pagãos, notavelmente (assim de imediato) Petrônio, Juvenal, Marcial, Sêneca… Precedidos, em tempos semi-republicanos, pela língua ferina de Catulo e pelo púlpito amargo e politicamente impotente de Cícero. (Uma astuta retomada contemporânea dessa tradição naquela ótima peça do Dürrenmatt, Rômulo, o Grande. Não conheço tradução portuguesa. Outra, inclemente, no Calígula do Camus.)
Não quero mesmo saber, viu, César, de te agradar;
menos ainda, se és desse ou daquele time.
(Catulo 93, tradução minha)
Telefone sem fio
O que o equívoco modelo de comportamento virtuoso que a direita estadunidense toma emprestado é, mal-e-mal, um pastiche de valores estereotipados da vida pública que são característicos da República romana, não do Império. É aqui que começa o telefone sem fio que vai dar, entre outras pérolas da corrente hodierna do absurdo, nos memes de não-contexto.
Mais uma vez, o colega Alexandre Mendonça – a quem convidei escrever conjuntamente, mas cujos compromissos não permitiram – me instrui ainda: existe hoje em dia uma corrente de pensamento jurídico que busca recuperar a instituição romana da ditadura, livrando o conceito das conotações negativas que lhe foram posteriormente penduradas – como se estas não passassem de adereços impróprios, degenerados do conceito originário, do “constitucionalismo romano” (haja aspas!).
Acho esse ponto bem interessante. Vou me arriscar a um resumo.
O mundo ocidental herdou muitos conceitos da vida civil e administrativa da Roma Antiga.
No entanto, os nomes de cargos públicos podem levar a equívocos, pois tinham, no funcionamento da administração romana, particularidades que precisam ser levadas em conta. A relação entre os cargos de exceção previstos na lei romana – imperium, dictatura – e os termos correlatos modernos é problemática.
O governo republicano da Roma Antiga (sécs. VI-I a.C.) tinha um funcionamento extremamente regrado, com mecanismos de controle para impedir o acúmulo de poder pessoal. O cargo mais elevado era o de cônsul, que unia funções executivas, legislativas, judiciárias, militares e religiosas. A cada ano eram eleitos dois cônsules, de modo que cada um controlava e limitava eventuais excessos do outro.
O poder regular, exercido em situações normais, era investido do conceito de potestas (em latim, “poder”, “autoridade”). Todo cargo público pressupunha potestas. No caso dos magistrados de maior ranque, a potestas compreendia os direitos de tomar augúrios (predições por adivinhos) na cidade de Roma; de legislar; de propor indenizações e confiscar propriedades; de convocar o povo para debater e votar; de convocar, presidir e fazer votar o senado. A potestas é sempre exercida dentro dos limites da legislação civil.
A lei romana previa, além disso, alguns cargos temporários de exceção.
O imperium era um direito de comando superior, de caráter militar e jurídico e de duração limitada a um ano. A atribuição de imperium incluía todos os direitos da potestas e mais outros poderes excepcionais, entre eles, o de introduzir correções na legislação civil. O imperium só podia ser concedido a ocupantes dos cargos mais elevados da hierarquia do governo (a um pretor ou a um cônsul), que era então chamado de imperator. O imperium era designado para ser exercido ou no território sagrado da cidade de Roma, ou fora dele: nunca ao mesmo tempo nos dois territórios. Nos anos finais da República Romana, é o uso indiscriminado dessa figura jurídica, por parte de Augusto (o novo nome oficial de Otaviano), que dará origem ao “imperador” como hoje entendemos essa palavra.
O dictator era outro cargo de magistratura extraordinária, ao qual se recorria em situações muito críticas. O dictator detinha poderes excepcionais, que substituíam e ultrapassavam as funções regulares de cônsul. Era atribuída a um líder escolhido pelo senado, sendo necessárias justificativas e motivações específicas para essa decisão. Tendo cumprido a tarefa designada, o costume era que o dictator renunciasse ao cargo, mesmo antes do prazo previsto. De origem claramente ligada a emergências militares, a lei previa a duração máxima de seis meses para essa função.
Na prática, porém, as coisas tomaram outro rumo. Quando, em 82 a.C., Lúcio Sila é investido com os poderes de dictator, é a primeira vez que o cargo de exceção seria utilizado em mais de 100 anos de história. Sila o mantém por cerca de dois ou três anos (não há consenso entre os historiadores), claramente ultrapassando os limites estabelecidos em lei. Cerca de 40 anos depois, as funções originais do cargo serão completamente distorcidas, com a nomeação de Júlio César como ditador vitalício.
É do uso corrompido dessa função civil e militar romana que a tradição ocidental derivou o significado moderno da palavra “ditadura”.
As funções do dictator previstas na legislação romana não devem ser confundidas com o poder exercido nos regimes que hoje chamamos de ditaduras. Foi só entre os anos 80 e 20 a.C. que, no jogo e contra-jogo de poderes, o conceito legislativo original foi sendo modificado, esgarçado, até levar à sua completa distorção política.
Querer dourar a pílula vermelha é vender gato por lebre. A nova distorção quer inocular o placebo da falsa virtude num jogo pra lá de sujo.
O período final da República Romana foi marcado por uma série de poderes excepcionais conferidos a líderes políticos centralizadores. É o que se observa desde a ditadura de Lúcio Sila (a partir de 82 a.C.), passando por três períodos de imperium de Cneu Pompeu nas décadas de 70 a 50 a.C., e em seguida por Júlio César, que em 44 a.C., após exercer por alguns períodos cargos de exceção, recebe oficialmente o título de ditador vitalício, acumulando inclusive poderes de veto sobre as decisões do senado. Na prática, já não se tratava de um regime republicano.
Em que mundo você vive?
Como assim, não pensar no Império romano?
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… Quem é que pode ver, tragar o que se faz
se não for um safado, um voraz treteiro:
o engenheiro-mor roubar da Gália-Além
e da Britânia ao longe o dote que tiveram?
‘Putinha Rômulo’! Tu vês tudinho e aprovas?
O tal agora presunçoso escapará,
virando a passear nas camas de quem for,
qual branco pombo ou como quem imita Adônis?
‘Putinha Rômulo’! Tu vês tudinho e aprovas?
És tu mesmo um safado, um voraz treteiro.
E só por isto foste, ó general sem par,
até a ilha derradeira do Ocidente,
afim de garantir teu xoxo pau-mandado:
que se fartasse à larga, acumulando prêmios?
Que quer a tal perversa generosidade?
Um tanto corrompendo… ou esbanjada?
De início depredaram-se os bens da pátria,
o Ponto foi segunda presa; então terceira,
Ibéria – como sabe o Tejo rico em ouro –
estão agora em risco a Gália e a Britânia…
Que novo crime já tramais, senão poder
uns bem-dotados patrimônios devorar?
Em nome da República, hein, magnatas,
ó sogro e genro, arruinastes tudo quanto?
(Catulo 29, em transposição de senários jâmbicos)