Joaquim Gianini Montalvão Correa
Em 11 de agosto de 1827 foram fundadas as primeiras universidades de direito do Brasil, em São Paulo (SP) e Olinda (PE). Para comemorar a data, estudantes de direito criaram a tradição do pendura. Embora existam variações sobre a prática, o pendura acontece quando um grupo de alunos de direito se junta para comer em um restaurante e sai sem pagar a conta. Mas será que isso é legal?
Apesar de não totalmente abolido, nos últimos anos, o pendura se tornou menos agressivo. A mídia, especialmente a jurídica, tende a tratar a tradição como algo saudável, porém insustentável, principalmente pela quantidade de alunos de direito no país.
Nos termos da lei, o pendura sempre foi um crime que representa uma lógica perversa de perpetuação da exclusão social por meio do direito penal.
Mas, para evitar que a ação dos estudantes seja punida pela Justiça, à luz do Art. 176 do Código Penal, estudantes veteranos costumavam instruir os demais a levarem dinheiro consigo ao restaurante, para que pudessem alegar que dispunham de recursos para o pagamento, apenas optando por não pagar.
Código Penal
Por incrível que pareça, esse argumento se sustentou por décadas. Mas essa interpretação do Art. 176 é falha em dois aspectos principais:
• “dispor” não é sinônimo de “possuir”. O recurso para o pagamento só está disponível se o cliente o oferece ao restaurante para o pagamento. Ou seja, possuindo ou não o dinheiro em mãos, o pendureiro não dispõe de recursos para efetuar o pagamento.
• tratar como não-criminosa uma conduta em que o agente, mesmo tendo dinheiro em mãos, se recusa a pagar a refeição, é afirmar que esse ato é menos gravoso do que o de alguém que realmente não possui recursos financeiros para se alimentar e se sente sem alternativa a não ser o cometimento de um crime.
Para entender por que a prática não foi tratada como crime todos esses anos, mesmo sendo defendida por argumentos tão fracos, basta ler um trecho da receita “bem-humorada” de Luiz Flávio Borges D’Urso, mestre e doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo, em coluna do jornal “A Tribuna” em 1994. “Esse é o verdadeiro pendura, que pode ser aceito ou rejeitado, acabando todos na delegacia mais próxima, frente a um delegado, que fatalmente também foi um ‘pendureiro’”.
É provável que os agentes da lei, eventuais pendureiros em sua própria época, tendam a ser lenientes sobre o tema. Pouquíssimos foram os casos em que a prática motivou processo judicial. Menor ainda é o número de casos em que houve punição dos agentes, se é que existem.
Origem
As teorias mais aceitas sobre a origem do pendura afirmam que as cidades que se tornaram sede dos novos centros de aprendizagem admiravam tanto os novos estudantes que restaurantes costumavam oferecer jantares gratuitos a eles em celebração da data de fundação das faculdades.
Com o surgimento de novas escolas, os donos de comércio passaram a considerar a prática insustentável. Por sua vez, os universitários passaram a “se convidar”, dando início à tradição do “Dia do Pendura”.
Ética
O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil e o Código de Ética da Magistratura expõem com clareza o dever dos operadores do direito de preservar a dignidade e a boa-fé da profissão, abstendo-se de utilizar as instituições jurídicas como ferramentas para a obtenção de privilégios. A exaltação do pendura demonstra uma distorção profunda dos princípios básicos da ética jurídica.
Além disso, a perpetuação do pendura é sintoma de um mal enraizado no direito penal brasileiro. O ordenamento jurídico pune os mais pobres e trata de forma mais amena os privilegiados.
Isso é claro no tratamento dos chamados“crimes famélicos”, aqueles em que o agente é motivado por uma necessidade básica como saciar a fome, a sede, ou a higiene pessoal. Na maioria das pessoas, quem comete esses crimes são mulheres negras de baixíssima renda, em sua maioria mães.
Justiça
Em 29 de setembro de 2021, uma mãe de cinco filhos foi presa após furtar o equivalente a R$ 21,69 em comida em um supermercado na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido de liberdade dela, alegando ser reincidente. Se em vez de fome, ela tivesse alegado como justificativa manter uma tradição entre estudantes, talvez a corte tivesse julgado em seu favor.
Se a tradição do pendura se torna cada vez mais parte da memória do mundo jurídico, o que se discute é o valor de seu legado. O direito arcaico olha com nostalgia para uma prática diametralmente oposta aos ditames éticos básicos da profissão, com nível de infantilidade equivalente ao de uma criança que declara poder furar a fila do parquinho no dia de seu aniversário.
O direito do futuro deve buscar o fim de velhas crenças e se preocupar mais com os próprios valores que com seu status social.
Quando esse dia chegar, o 11 de agosto se tornará uma verdadeira saudação à Justiça. Enquanto isso, piadas como “o advogado pensa que é Deus, e o juiz tem certeza” continuam mantendo um fundo de verdade.