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Por que Bolsonaro está sendo julgado pelo STF — e o que isso realmente significa

Entenda por que o STF decidiu manter a competência para julgar Bolsonaro, o que está em jogo na acusação de tentativa de golpe e como esse julgamento pode redefinir os rumos da democracia brasileira.
Ex-presidente Jair Bolsonaro faz pronunciamento à imprensa cercado por aliados e jornalistas em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. Diversos microfones de veículos de mídia estão posicionados à sua frente enquanto ele gesticula com as mãos, em meio a grande cobertura da imprensa.
Ex-presidente Jair Bolsonaro durante declaração a imprensa após virar Réu no STF. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

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Alexandre Mendonça

A pergunta parece simples: por que o Supremo Tribunal Federal está julgando um ex-presidente da República? A resposta, no entanto, exige um mergulho profundo em mudanças de jurisprudência, interpretação constitucional e, claro, nas disputas de poder que definem o cenário político brasileiro.

O Supremo mudou mais de uma vez sua compreensão sobre sua própria competência desde 1964. A penúltima reviravolta veio na famosa Questão de Ordem da Ação Penal 937, do Rio de Janeiro. Ali, o STF decidiu que, encerrada a fase de instrução processual — ou seja, ouvidas as testemunhas e publicada a intimação para alegações finais — o processo não mudaria mais de instância, mesmo que o réu assumisse ou deixasse um cargo público. Na prática, isso significava que um político só permaneceria sendo julgado no Supremo se o processo estivesse suficientemente avançado. Caso contrário, o caso voltaria ao primeiro grau.


Por que isso importa?

Este julgamento importa porque vai muito além de um ex-presidente no banco dos réus: ele define os contornos da responsabilização de autoridades, testa a coerência do STF diante da Constituição e pode estabelecer precedentes cruciais sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito — num momento em que as instituições brasileiras ainda reafirmam seus limites frente a investidas autoritárias.

Mudança no STF

Essa era a regra até pouco tempo. Agora, o critério passou a ser o momento da prática do crime, que atende ao que determina a Constituição e o princípio do juiz natural. Isso significa que se o réu ocupava um cargo com prerrogativa de foro quando cometeu a infração, a competência permanece no STF, independentemente do cargo atual, ou da falra dele. Essa interpretação é mais alinhada à doutrina majoritária do processo penal, que defende a fixação da competência com base nas circunstâncias do momento do fato, em respeito à garantia do juiz natural.

Contudo, há uma questão importante: essa nova interpretação está sendo aplicada retroativamente, o que incomoda muitos juristas. Mudanças de competência, segundo boa parte da doutrina, não deveriam valer para fatos passados — também para proteger o direito ao juiz natural, previsto na Constituição.

Além disso, há o argumento de que a prerrogativa de foro deveria ser limitada ao exercício do cargo. Ex-autoridades seriam, portanto, julgadas como qualquer cidadão. Por outro lado, a própria Constituição afirma, de forma objetiva, que “crimes cometidos pelo presidente da República serão julgados pelo STF”, sem qualquer menção a prazos ou vínculos temporais. Cabe então ao intérprete constitucional decidir — e no caso, decidir de forma definitiva


Para quem esse assunto interessa?

Este assunto interessa a todos que se preocupam com a democracia brasileira — incluindo juristas, estudantes de direito, jornalistas, parlamentares, servidores públicos e, sobretudo, cidadãos atentos à preservação das instituições. Também é de especial interesse para quem estuda direito constitucional, processos penais envolvendo autoridades e os limites da atuação do Supremo Tribunal Federal.

A escolha estratégica no STF

Outra pergunta que surgiu é: por que o caso está sendo julgado por uma Turma do Supremo, e não pelo plenário? A resposta está no Regimento Interno do STF, que permite a escolha entre Turma e plenário, exceto quando o réu é uma autoridade em exercício. Embora existisse uma tradição de submeter todas as ações penais ao plenário, o julgamento da Ação Penal 470 (o “Mensalão”) revelou os limites dessa prática, que sacrificava celeridade e objetividade. A mudança, embora funcional, concentrou poder nas mãos dos relatores, que agora podem decidir, estrategicamente, o caminho que os casos vão seguir.

Quanto à possibilidade de recurso: se o julgamento na Turma terminar com ao menos dois votos favoráveis ao réu, caberá recurso ao plenário, por meio dos chamados “embargos infringentes”. Caso o resultado seja unânime, não há previsão de recurso interno. O problema? Essa dinâmica pode ser considerada uma violação do artigo 8º, inciso II, alínea h, do Pacto de San José da Costa Rica — tratado internacional que garante o direito ao duplo grau de jurisdição. O resultado provável: mais uma condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos.

O conteúdo da denúncia também levanta questões jurídicas complexas. A principal delas é saber se Bolsonaro apenas ensaiou uma tentativa de golpe ou se, ao longo de seu mandato, conduziu uma série coordenada de ações que, em conjunto, configuram um plano golpista — um “iter criminis” prolongado.

A denúncia, apresentada com base nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, trata de crimes contra o Estado Democrático de Direito. É a primeira vez que esses tipos penais serão efetivamente discutidos no país, o que torna o julgamento ainda mais delicado. Não há jurisprudência consolidada, nem mesmo um parâmetro mínimo de interpretação, como há nos crimes mais comuns.

A estratégia da defesa

Por fim, as estratégias das defesas, até aqui,  são curiosas: em vez de negar os crimes, tentam desvincular os réus das ações. Crimes, sim — mas sem autores. À acusação, portanto caberá demonstrar, com base nas investigações, que os réus exerciam o chamado “domínio do fato” — conceito segundo o qual o autor do crime é quem tem o controle sobre os meios de realização do delito. Nesse contexto, militares, o então presidente, o Ministro da Justiça e outros membros do alto escalão figuram como possíveis protagonistas. Já os participantes dos atos do 8 de janeiro, em sua maioria, seriam meros executores — partícipes, mas não autores principais.

O que vem a seguir? O julgamento precisará definir o que configura uma tentativa de golpe, o que são atos preparatórios e o que são meras consequências. Não será uma tarefa simples, e idealmente, não deveria estar subordinada ao calendário eleitoral — embora tudo indique que está.

A pergunta que sobra é: esse ritmo acelerado comprometerá a qualidade da decisão? E mais importante: mesmo com os riscos, será esse o preço necessário para reafirmar, com clareza, que não há espaço para aventuras autoritárias no Brasil do século XXI?

Foto de Alexandre Mendonça

Alexandre Mendonça

O advogado Alexandre Mendonça viveu a vida antes de se por a estudá-la. Tentou ser engenheiro e ganhou seu sustento como consultor financeiro, dedicando-se hoje à consultoria jurídica empresarial e para mercado de capitais. É formado em administração de empresas pela EAESP-FGV e em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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