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O que Silvia Federici ensina sobre resistência feminina

Subjugar mulheres foi arma para o desenvolvimento do capitalismo
Caça às bruxas foi tentativa de controlar e disciplinar as mulheres
Caça às bruxas foi tentativa de controlar e disciplinar as mulheres © Fotokon | Dreamstime.com

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Alexandre Mendonça

Silvia Federicci é hoje uma das principais intelectuais do mundo, estudando o feminismo e as relações de gênero a partir de uma perspectiva – por falta de termo melhor – marxista, especialmente em relação à crítica do trabalho reprodutivo, da violência contra as mulheres e das relações de poder capitalistas e patriarcais.

Seu trabalho mais influente é provavelmente o livro “Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva“. Obra em que ela argumenta que a subjugação das mulheres está profundamente entrelaçada com o desenvolvimento do capitalismo. E também que as caças às bruxas na Europa da Idade Moderna foram uma tentativa de controlar e disciplinar as mulheres, especialmente aquelas que se destacavam na medicina herbal e na assistência ao parto.

História

Nesse período, a crise do feudalismo não gerou apenas a resposta capitalista, como ensinam as escolas. Por toda a Europa, floresceram movimentos que questionavam a estrutura do poder vigente, tanto econômico quanto religioso. 

Assim como nos tempos atuais, tínhamos um profundo questionamento social, onde “o velho já havia morrido, mas o novo ainda não havia nascido”.

Crise

Essa crise inclusive começou muito mal para o surgimento do capitalismo. Federicci mostra que houve desenvolvimentos que atrapalhariam a evolução do sistema capitalista. Entre eles estão o crescimento dos salários dos artesãos e a diminuição das rendas dos mestres e dos aluguéis, o que levou a uma “tendência crônica à desacumulação”, e a uma maior “igualdade”. Dessas condições iniciais de desacumulação não poderia ter surgido o capitalismo, que tem por premissa uma acumulação inicial de capital.

A esse movimento, a elite europeia apresenta, em contrapartida, uma iniciativa global de contenção, que leva à busca e à apropriação de novas fontes de riqueza e, portanto, de acumulação. Leva também a novas formas de organizar o trabalho, com a transformação do conceito antigo de escravidão (por guerra, por dívida, como punição por danos civis ou penais) para o conceito moderno, de condição econômica, com profunda marcação racial. 

Sempre que aprendemos sobre a passagem do feudalismo ao capitalismo, usamos a palavra “transição”. Federici mostra que essa palavra é muito ruim, porque implica em processo longo, de mudanças infinitesimais, pacífico e consensual. 

Nada mais errado: a busca pelas novas formas de trabalho e riqueza foi, ao contrário, um processo de ruptura violenta. Um dos “períodos de maior descontinuidade da História”, uma verdadeira revolução. 

Capitalismo

A esse momento o próprio Marx dá o nome de acumulação primitiva, estabelecendo que o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho. E também que a dissociação entre trabalhadores e meios de produção, e não a abstinência dos ricos, é a fonte da riqueza capitalista

Além da expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus e a escravização dos povos originários da África e da América, o processo de reação da classe dominante envolveu a subjugação feminina.

Isso demandou a transformação do corpo feminino em máquina e a sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho. 

Violência

Essa mudança cultural tem consequências que vão desde a centralização de instrumentos como o relógio na vida das pessoas até às chamadas “caças às bruxas”. E, consequentemente, estabelecimentos de clivagens e hierarquias dentro da classe trabalhadora, renegando a determinados gêneros e “raças”  papéis “naturais” de sujeição e níveis diferentes de opressão.

A violência foi, portanto, a principal alavanca do “progresso” capitalista.

Mesmo na Europa, ainda que sob resistência do campesinato, a lógica de tentar alcançar a situação de escravo ou servo foi perseguida, movimento que ensejou reações das camadas populares.

Onde os populares não foram vencidos, a resposta das classes dominantes foi a expropriação das terras, o estabelecimento de trabalho assalariado obrigatório, ou até mesmo a morte. 

Mulheres

Federici argumenta que as mulheres sofreram mais quando perderam a terra e o vilarejo comunitário se desintegrou, e foram as que mais lutaram contra isso.

Isso se deu porque, para as mulheres, o custo social de estarem fora das terras, andando pelo mundo como “vagabundas”, ou trabalhadoras migrantes, era muito mais alto. Uma vez que uma vida nômade as expunha à violência masculina. 

As mulheres também tinham mobilidade reduzida devido à gravidez e ao cuidado dos filhos. As mulheres tampouco podiam se tornar soldados pagos, apesar de algumas terem se unido aos exércitos. 

Essa união se deu em papéis como cozinheiras, lavadeiras, prostitutas e esposas, forçando-as à condição de pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras.

Faltava, porém, estabelecer uma esfera de controle: a reprodução da força de trabalho. Para isso, era necessário estabelecer controle sobre os corpos femininos.

Federici mostra que se lançou uma verdadeira guerra contra as mulheres, claramente orientada a quebrar o controle que elas haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução. As classes dominantes travaram uma guerra principalmente por meio da caça às bruxas.

Demonizando literalmente qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa. Ao mesmo tempo que acusavam as mulheres de sacrificar crianças para o demônio.

Mas essa guerra também recorreu a uma redefinição do que constituía um crime reprodutivo. 

Opressão

Desse modo, a partir de meados do século XVI, ao mesmo tempo que os barcos portugueses retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos, todos os governos europeus começaram a impor penas mais severas à contracepção, ao aborto e ao infanticídio.

Federici nos mostra, em resumo, que para que o capitalismo triunfasse foi preciso subjugar as mulheres, suas práticas e seus corpos. 

Com isso, estabelece que a esfera de resistência à opressão passa necessariamente pela vivência e resistência femininas. O que continua até os dias de hoje, com as iniciativas cada vez mais explícitas de controle sobre o feminino. 

A resistência, na língua e na sociedade, é uma mulher.

Calibã e a Bruxa
Silvia Federici
Editora Elefante
464 páginas
R$ 69,90

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Alexandre Mendonça

O advogado Alexandre Mendonça viveu a vida antes de se por a estudá-la. Tentou ser engenheiro e ganhou seu sustento como consultor financeiro, dedicando-se hoje à consultoria jurídica empresarial e para mercado de capitais. É formado em administração de empresas pela EAESP-FGV e em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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