Por que a Justiça falhou ao negar ação de Ana Hickmann com base na lei Maria da Penha

Medida ignora que centralizar as questões que envolvem a violência doméstica visam a proteção da vítima
Ao negar pedido de Ana Hickmann, magistrado contradiz não apenas a letra da lei, mas a lógica por trás do dispositivo - Reprodução do Instagram

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Anelise Borguezi

Recentemente a mídia noticiou intensamente que o pedido de divórcio feito pela modelo e apresentadora Ana Hickmann com base na Lei Maria da Penha havia sido negado pela Justiça, com a justificativa de que o Juizado de Violência Doméstica não seria o órgão competente para decidir sobre o tema, devendo o pedido ser encaminhado para uma vara de família.

Apesar da recorrência deste tipo de decisão, negar a tramitação da ação de divórcio no âmbito deste Juizado contraria a própria Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), que dispõe em seu artigo 14-A que a ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Dessa forma, é inegável que as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher possuem competência híbrida e cumulativa, ou seja, detêm competência para julgar questões relacionadas tanto ao direito penal quanto ao direito civil, contanto que estejam associadas à temática da violência doméstica.

Assim, uma mulher vítima de violência doméstica tem o direito de solicitar o divórcio na mesma vara em que transcorre o processo de aplicação de medidas protetivas, como ocorreu no caso da apresentadora.

Necessidade das vítimas

No entanto, a negativa do magistrado em processar a ação de divórcio desta vítima contradiz não apenas a letra da lei, mas também a lógica por trás da criação desse dispositivo.

O artigo 14-A passou a integrar a Lei Maria da Penha em 2019, com o claro intuito de agilizar o processo de fim do casamento ou união estável de vítimas de violência doméstica pelas vias legais, tendo em vista que as varas de família costumam ter um número maior de demandas em comparação com as varas de violência doméstica, o que torna os procedimentos mais morosos.

Em outras palavras, ao concentrar essas demandas em um único órgão jurisdicional, evita-se a dispersão de processos e a duplicidade de esforços, o que leva uma resposta mais eficiente às necessidades das vítimas.

Jurisprudência

Este é também o entendimento do próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema. A jurisprudência do tribunal superior reforça a legalidade do dispositivo em questão e reconhece que o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é competente para conhecer e julgar a ação de divórcio ou de reconhecimento e dissolução de união estável na hipótese em que houve promoção de medida protetiva. Além disso, reconhece também tal competência ainda que as medidas protetivas tenham sido extintas por homologação de acordo entre as partes.

Vejamos o trecho retirado de Acórdão em Recurso Especial Nº 1.496.030 – MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze:

O art. 14 da Lei n. 11.340/2006 preconiza a competência cumulativa (criminal e civil) da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar.

A amplitude da competência conferida pela Lei n. 11.340/2006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo-lhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato.

Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher, vítima de violência familiar e doméstica, ao Poder Judiciário, e confere-lhe real proteção.

O que se percebe é que a decisão que negou o pedido de divórcio da apresentadora com base na suposta incompetência da vara não apenas contraria a jurisprudência do STJ, mas também choca com a própria lógica por trás do dispositivo legal.

Proteção

Ao centralizar as questões que envolvem a violência doméstica sofrida em um único órgão jurisdicional, busca-se não apenas a eficiência processual, mas, principalmente, a proteção efetiva da vítima.

A importância de adaptar as práticas judiciais à realidade específica desses casos torna-se evidente, reforçando a necessidade de uma abordagem integrada que garanta o acesso à justiça e a eficácia das medidas protetivas.

Anelise Borguezi

Anelise Borguezi é pós-graduada em direito pela Universidade de São Paulo e sócia do Borguezi e Vendramini, Advocacia para Mulheres e Minorias

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