Elizabeth Vilela de Moraes
Por mais que o Direito de Família esteja cada vez mais presente no cotidiano das pessoas, ainda há temas que só ganham espaço no debate público quando se revelam por meio da dor — especialmente quando essa dor envolve pessoas conhecidas. É o caso da repercussão em torno da guarda do filho da cantora Marília Mendonça, falecida tragicamente em 2021.
No centro da discussão, estavam dois nomes: Murilo Huff, pai da criança, e Ruth Moreira, avó materna. A princípio, a relação parecia ser de apoio mútuo e cuidado compartilhado. Com o tempo, no entanto, o que se viu foi o desgaste, a divergência e a exposição pública de uma ruptura familiar que passou a impactar diretamente o bem-estar de uma criança que, além de perder a mãe, agora vivencia a tensão entre as figuras que antes a protegiam.
As perguntas nas redes e nos tribunais invisíveis da opinião pública, foram diretas: com quem a criança deve ficar? o filho é de quem?
Porque revela como disputas por guarda afetam profundamente o bem-estar da criança e expõe os desafios do Direito de Família em equilibrar afeto, presença e responsabilidade.
Por que isso importa?
A resposta jurídica — e a vida real
A lei é clara: com a morte de um dos genitores, o outro, salvo impedimentos graves, assume integralmente o poder familiar. O artigo 1.634 do Código Civil deixa isso explícito. E, no caso em questão, pelo que nos mostram os noticiários, o pai era presente, cuidador, ativo. Em tese, não haveria razão jurídica para que a guarda da criança não fosse exercida por ele.
Mas o Direito de Família não vive apenas da letra fria da lei. Vive da realidade das relações, das histórias que não cabem em artigos e parágrafos. E, nesse contexto, a figura da avó — Ruth Moreira — também não pode ser ignorada. Avós que criam netos, que participam da rotina, que dividem (ou assumem) responsabilidades parentais, são realidade para milhões de brasileiros. Desconsiderar esse papel afetivo é desconsiderar a própria noção de família no Brasil.
Pais, mães, avós, profissionais do direito, educadores, psicólogos e toda a sociedade que se preocupa com o desenvolvimento saudável de crianças em contextos familiares delicados.
Para quem isso interessa?
Por isso, o que parecia simples no plano jurídico revelou-se muito mais denso no plano humano. E é aí que mora a importância desse caso.
Paternidade ativa: entre o discurso e a prática
Um aspecto que o caso trouxe à tona — e que raramente ganha espaço nas manchetes — foi a necessidade de reconhecer o exercício real da paternidade ativa. Há um abismo entre o pai que paga pensão e aquele que participa da vida dos filhos. Consultas médicas, febres no meio da noite, conversas escolares, fraldas, vacinas, presença constante. Isso também é ser pai. E precisa ser valorizado.
No caso de Murilo Huff, tudo indicava que esse modelo de paternidade vinha sendo exercido desde o nascimento do filho. E, mesmo assim, houve quem questionasse sua capacidade de criar a criança sozinho, como se o cuidado integral fosse naturalmente — e exclusivamente — atribuído às figuras femininas da família.
A crítica social que emerge daí é contundente: estamos prontos, de fato, para reconhecer e respeitar o pai que cuida? Ou seguimos condicionados a projetar o cuidado apenas nas mães e avós, mesmo quando a realidade mostra um cenário diferente do usual?
A guarda e a disputa: o que a criança realmente precisa?
Quando o diálogo familiar se rompe, quem mais sente — ainda que sem conseguir expressar — é quem menos tem voz no processo: a criança. Pequena demais para opinar formalmente, mas sensível o suficiente para absorver todo o ambiente ao seu redor. Em disputas familiares, os adultos se enfrentam, a sociedade escolhe lados e a Justiça tenta mediar — mas é a criança quem carrega, muitas vezes silenciosamente, o peso de tudo isso.
Por isso, mais do que aplicar um modelo de guarda com base em fórmulas prontas, é essencial entender como a guarda é vivida na prática, no dia a dia da família. A guarda compartilhada, por exemplo, costuma ser confundida com uma divisão matemática do tempo da criança entre duas casas. Mas não é disso que se trata. Compartilhar a guarda é compartilhar decisões, corresponsabilidades, rotinas. E, para isso ser possível, a comunicação entre os adultos deve ser minimamente harmoniosa. Sem diálogo, o que se tem é apenas um nome bonito para uma estrutura que não se sustenta.
No caso em debate, a guarda unilateral foi pleiteada e deferida ao pai — e, dentro da legalidade e da realidade vivida, é compreensível. A partir de então, é ele quem passa a tomar as decisões mais relevantes da vida do filho. Mas isso não apaga — e nem deve apagar — o papel que a avó materna desempenhou até ali.
O lar de referência muda, sim. A autoridade parental passa a se concentrar no pai. Mas vínculos não se apagam com uma determinação judicial. A avó, que sempre cuidou, acompanhou, protegeu, continua sendo uma figura de afeto, de memória, de continuidade. E a manutenção desse vínculo é parte do que a criança precisa para seguir em frente com segurança emocional.
Foi justamente aí que o caso escancarou um dos grandes desafios do direito de família: a convivência saudável não depende só do afeto passado — ela exige disposição presente para o diálogo, mesmo quando o diálogo é difícil. Quando os adultos deixam de conversar, quando a mágoa vira barreira, quando o interesse pessoal se sobrepõe ao interesse da criança, quem perde não é quem ganhou ou perdeu a guarda. Quem perde é a criança.
O que esse caso nos ensina?
O caso Murilo e Ruth não é só de uma família famosa. É o espelho de tantas outras famílias que enfrentam o luto, a reconfiguração de vínculos e a necessidade de encontrar novas formas de ser pai, mãe, avó — e de proteger quem, no fim, é mais importante do que qualquer disputa: a criança.
Essa exposição pública, ainda que desconfortável, serve para nos lembrar que:
- Cada núcleo familiar é único e precisa de um olhar sensível e individualizado;
- O reconhecimento da paternidade ativa vai muito além da assinatura no registro ou do pagamento da pensão;
- A família extensa pode ser apoio e estrutura, mas jamais substituto automático do genitor vivo e presente;
- O planejamento familiar, inclusive o sucessório, deve envolver questões práticas sobre a guarda e o cuidado dos filhos menores;
- O Judiciário precisa estar preparado para mediar, com firmeza e empatia, essas relações atravessadas por dor e conflito.
O direito de família é, antes de tudo, um direito das relações humanas. Quando nos esquecemos disso, corremos o risco de transformar a lei em obstáculo, e não em ferramenta de proteção. Casos como o de Murilo Huff e Ruth Moreira escancaram os limites das estruturas formais e nos chamam a olhar, com mais profundidade, para os vínculos afetivos, para as presenças reais e para o que verdadeiramente importa na vida de uma criança: amor, cuidado e segurança.
No fim das contas, o filho é de quem cuida. E cuidar é verbo que se conjuga com presença, responsabilidade e afeto. O resto é ruído.