Lucas Castro e Daniela Dantas*
Em tempos de novas configurações familiares, é cada vez mais comum que crianças e adolescentes sejam criados por figuras que assumem com afeto e responsabilidade a função parental, embora não tenham o vínculo biológico. Relações que surgem de segundas uniões, novos casamentos ou reconstruções familiares muitas vezes coexistem com a filiação de origem, sem jamais negá-la.
São vínculos construídos na convivência, no cuidado cotidiano, na presença constante – e que, ainda assim, nem sempre são reconhecidos formalmente em vida. Em verdade, o reconhecimento da paternidade socioafetiva costuma ser adiado, seja por desconhecimento, receio ou pela crença equivocada de que o afeto, por si só, bastaria. Em muitos casos, essa busca só acaba após a morte daquele com quem se construiu esse vínculo.
Porque a socioafetividade, embora vivida no cotidiano, não se sustenta sozinha no âmbito jurídico. A falta de formalização transforma relações reais — às vezes construídas por décadas — em batalhas probatórias que se arrastam após a morte, comprometendo direitos sucessórios, proteção familiar e a própria narrativa afetiva da vida dessas pessoas. A matéria alerta que o afeto, sem reconhecimento formal, corre o risco de desaparecer no vácuo documental que nossos tribunais não estão autorizados a preencher por presunção.
Por que isso importa?
Hoje, quando fundada em vínculos genuínos, a paternidade socioafetiva pode ser reconhecida como modalidade legítima de filiação, produzindo efeitos pessoais e patrimoniais. Deve, todavia, ser formalizada de forma adequada.
E, quando o reconhecimento não ocorre em vida, é possível o pedido judicial post mortem. A jurisprudência, porém, tem adotado uma postura cautelosa em casos de reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, exigindo prova robusta e inequívoca da existência de um vínculo afetivo de filiação entre o falecido e o pretenso filho.
É necessária a demonstração clara e expressa da intenção manifestada em vida de assumir o papel paterno, acompanhada de comportamentos reiterados, públicos e contínuos que revele nessa escolha – ou seja, que o falecido tenha efetivamente tratado o autor como filho, com tudo o que essa condição implica no plano social, afetivo e patrimonial.
Trata-se, por vezes, de uma prova difícil de se produzir, justamente pela ausência daquele que poderia declarar a sua vontade.
Nesse contexto, a falta de manifestação expressa e inequívoca do falecido costuma ser determinante para a improcedência dos pedidos formulados após a sua morte, revelando uma preocupação dos tribunais em não presumir vínculos jurídicos a partir de relações afetivas informais ou mal definidas.
Vale dizer que o reconhecimento da paternidade socioafetiva não gera apenas efeitos simbólicos: produz consequências jurídicas concretas, inclusive patrimoniais. Do vínculo reconhecido decorrem direitos sucessórios — o filho passa a figurar como herdeiro necessário — e obrigações recíprocas de alimentos, tanto do pai para com o filho, quanto do filho para com o pai. A parentalidade, nesses moldes, impõe cuidado mútuo, inclusive no amparo à velhice.
Para famílias recompostas, pais e mães afetivos, advogados de família e sucessões, pessoas que criam ou foram criadas por quem não é biologicamente seu genitor, além de quem atua em políticas públicas voltadas à infância, à velhice e à pluralidade das estruturas familiares. Importa, sobretudo, para qualquer pessoa que vive um vínculo afetivo de parentalidade e imagina — equivocadamente — que o afeto basta.
Para quem isso interessa?
Diante desse cenário, torna-se evidente a importância de formalizar, em vida, os vínculos afetivos que assumem contornos de filiação. Além de pacificar relações familiares e preservar afetos, esse gesto garante segurança jurídica e evita disputas futuras.
É importante notar, aliás, que o ordenamento jurídico oferece caminhos seguros e acessíveis para formalizar vínculos afetivos com força legal. O procedimento extrajudicial – anteriormente previsto no Provimento nº 63/2017 e atualmente consolidado no Provimento nº 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça – permite o reconhecimento da paternidade socioafetiva diretamente em cartório, com averbação imediata na certidão de nascimento.
O ato requer a assistência obrigatória de advogado, com poderes específicos para esse fim, assegurando a compreensão plena dos efeitos jurídicos e patrimoniais do reconhecimento. Ademais, quando já houver pai ou mãe biológicos ou registrais, é necessária sua concordância expressa. O registro pode, inclusive, refletir a multiparentalidade: admite-se a inclusão de até dois pais ou duas mães no campo “filiação”, garantindo visibilidade e proteção jurídica aos vínculos afetivos que coexistem com a filiação de origem.
O testamento pode também constituir valioso meio de expressão da vontade do declarante. A manifestação testamentária que reconhece o vínculo afetivo, quando aliada a outros elementos de prova, pode reforçar a intenção inequívoca de parentalidade, especialmente em situações nas quais o reconhecimento formal não foi realizado em vida.
No entanto, o testamento não substitui o registro como ato jurídico de filiação e, para produzir efeitos no plano da parentalidade, deverá ser objeto de ação judicial específica de reconhecimento, garantidos o contraditório e a ampla defesa, com a citação dos herdeiros do falecido, cônjuge e demais interessados na sucessão.
Diante desse panorama, reconhecer a paternidade socioafetiva em vida é uma medida que previne disputas futuras, assegura direitos e confere plena eficácia aos vínculos genuínos de filiação. O afeto, embora essencial à socioafetividade, deve estar amparado por uma realidade concreta, reconhecida entre as partes, e refletida de forma clara na esfera jurídica e social.
Assim, propõe-se uma reflexão responsável: reconhecer, em vida, vínculos afetivos que assumem contornos de filiação é um gesto que confere segurança jurídica, pacifica relações familiares e assegura a expressão da verdadeira parentalidade. Para além da origem biológica, ser pai é também uma construção feita de presença, compromisso e cuidado — e o direito está atento a essa realidade.
*Lucas Gabriel Cabral de Castro é advogado no escritório Finocchio & Ustra Advogados, formado pela PUC-Campinas, atua na condução de litígios envolvendo obrigações, contratos, responsabilidade civil, direitos reais, recuperação de crédito, bem como divisão patrimonial, direito de família e sucessões. Pós-graduando em Planejamento Patrimonial e Sucessório – FGV SP (FGV Law).
*Daniela Justino Dantas Martelli é advogada especialista em família e sucessões, contratos e processo civil do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
