Milka Veríssimo
Em abril, o jornal The New York Times iniciou uma série de reportagens sobre nadadores chineses nadadores que testaram positivo para uma substância proibida antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio e, ainda assim, participaram da competição. A defesa alegou contaminação acidental. Isso colocou sob holofotes a equipe chinesa nos Jogos de Paris e abriu uma disputa política entre a China e os EUA.
No centro da disputa está a Wada, a Agência Mundial Antidopagem (World Anti-Doping Agency), responsável por coordenar a luta global contra o doping no esporte. A agência afirma que age de forma imparcial.
Para entender como funciona o controle de dopagem entre os atletas de alto rendimento, o +QD conversou com a advogada Mariana Araújo, especialista em direito desportivo e entretenimento do Ambiel Advogados. Segundo ela, o controle antidoping garante os princípios fundamentais do esporte, para que os atletas possam competir em condições de igualdade. “O maior desafio é a quantidade de atletas que ingerem substâncias proibidas de forma acidental”, afirma.
+QD: Qual é a importância de ter um controle antidoping nas competições esportivas?
Mariana Araújo: Segundo Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos, o olimpismo é a “escola de nobreza e de pureza moral, bem como de resistência e energia física – mas só se a honestidade e a abnegação do esportista forem desenvolvidas de forma tão acentuada quanto a força dos músculos”.
Faz parte do movimento olímpico que os atletas ajam de forma leal, sem a utilização de substâncias ou métodos proibidos capazes de promover alterações físicas ou psíquicas que melhorem, artificialmente, seu desempenho esportivo, dando-lhes vantagem perante seus adversários. Isso é o que se conhece como fair play (jogo limpo).
Os competidores devem agir com ética, honestidade e caráter, respeitando a si próprios e aos outros participantes, sem o recurso a “meios artificiais” de melhora de performance. Nesse sentido, a importância do controle antidoping é justamente a de garantir os princípios fundamentais do esporte. O Código Mundial Antidoping reforça essa ideia ao dispor que seu objetivo principal é “proteger o direito fundamental dos atletas de participar de atividades esportivas isentas de doping, promovendo assim a saúde, a justiça e a igualdade no esporte”.
+QD: Quais são os critérios de escolha de atletas que serão submetidos a testes?
Mariana Araújo: Os critérios são variados. Os atletas podem ser escolhidos de maneira aleatória (por sorteio), em função de seus resultados ou por qualquer suspeita. A seleção para o controle de dopagem em qualquer momento e lugar, sem aviso prévio, em especial quando falamos das testagens fora de competição.
É dever do atleta prestar a informação de sua localização de forma precisa no sistema Whereabouts/Adams [plataforma online gerenciada pela Wada para rastrear a localização dos atletas e gerenciar dados de testes antidoping, resultados e violações de regras] e submeter-se aos testes se aplicável.
Em geral, os atletas sujeitos a esses controles fora de competição são aqueles que integram o grupo de testes ou grupo de monitoramento. Trata-sede um conjunto restrito de atletas, todos de alto rendimento. No caso dos esportes olímpicos, a maior parte deles é beneficiária do “Atleta Pódio”.
+QD: Como são conduzidos os julgamentos dos atletas pegos nos exames antidoping?
Mariana Araújo: O controle de dopagem possui sete etapas: planejamento, seleção de atletas, notificação, coleta de amostras, transporte de amostras, análise laboratorial e gestão dos resultados. A partir disso, todo atleta que cometer uma violação às regras do Código Mundial Antidopagem pode sofrer as punições nele previstas.
Quando um atleta recebe um resultado analítico adverso, isto é, quando seu resultado é positivo para uma substância ou método proibido, imediatamente lhe é imposta uma suspensão provisória. Caso ele esteja em período de competição, provavelmente ficará fora de alguma prova ou partida enquanto sua defesa não for apresentada.
O atleta tem direito a uma audiência provisória. Isso pode acontecer antes ou imediatamente após a imposição da suspensão, ou uma audiência final, sumária, imediatamente após a imposição da sanção.
Para que a sanção provisória seja eliminada, o atleta deve comprovar, em linhas gerais, que a violação envolve um produto contaminado ou uma substância de abuso que foi ingerida fora da competição, não relacionada ao seu desempenho esportivo. Neste último caso, seu período de inelegibilidade pode ser de um ou 3 três meses.
Após a audiência, caso a sanção provisória seja validada, o atleta terá o direito de interpor recurso.
O atleta que cometer uma infração no Brasil será julgado e processado pelo Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (JAD), podendo recorrer das penalidades impostas. A última e definitiva instância é o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS). [O TAS/CAS é a principal instituição responsável por resolver disputas relacionadas ao esporte, incluindo casos de doping.]
Embora o TAS/CAS seja sediado em Lausanne, na Suíça, especificamente nesses Jogos Olímpicos foi montada uma base da divisão Antidoping da Corte em Paris. Isso agiliza os trâmites. Os atletas que testarem positivo podem realizar sua defesa lá mesmo.
São inúmeras as vantagens trazidas por essa divisão in loco na França:
• respostas céleres para temas complexos, sendo que, com exceção a casos incomuns, as decisões tendem a ser proferidas em até 24 horas da apresentação do requerimento de arbitragem
• árbitros capacitados para lidar com as especificidades dos Jogos, para que a dinâmica da competição seja influenciada o menos possível
• gratuidade do procedimento, inclusive a disponibilização sem custo dos árbitros para as partes em disputa, diferentemente do que ocorre nos procedimentos ordinários e de apelações no TAS/CAS. As partes somente precisam arcar com os custos de seus próprios advogados ou representantes legais.
+QD: Quais são os critérios para inclusão de uma substância na lista de proibição para consumo por atletas?
Mariana Araújo: A lista de substâncias e métodos proibidos faz parte de um padrão internacional obrigatório do Programa Mundial Antidopagem. O rol é atualizado anualmente, após um extenso processo de consulta mediado pela Wada ou sempre que uma nova substância ou método sejam identificados.
Os critérios de inclusão ou exclusão das substâncias nessa lista são três: o potencial ou efetivo ganho de desempenho esportivo, o real ou potencial risco à saúde do atleta e as substâncias que violem o espírito esportivo, isto é, aquelas que contrariem a busca ética da excelência humana por meio do compromisso de aperfeiçoamento dos talentos naturais de cada atleta.
+QD: Que novas medidas e tecnologias foram implementadas pela Wada e pela ITA nos Jogos Olímpicos de Paris?
Mariana Araújo: Em Paris, para maior agilidade quanto à realização dos exames, a Agência Francesa de Luta contra o Doping vai dispor de 300 fiscais e 800 assistentes para acompanhar os atletas durante os testes de doping. Além disso, haverá cerca de 50 estações antidoping, divididas entre a Vila Olímpica e o restante das instalações dos Jogos.
O laboratório responsável por receber e processar as amostras, filiado à Wada, triplicou suas equipes. Também recebeu equipamentos adicionais necessários ao armazenamento e análises das amostras.
Em paralelo às operações de controle antidopagem, Paris 2024 se comprometeu a fornecer aos atletas uma série de materiais educativos.
Cada estação de controle antidopagem possui cartazes e ferramentas para compartilhar informações sobre regulamentos e direitos antidoping. Por fim, Paris 2024, por meio da Wada e da ITA, também está sensibilizando seus voluntários para a luta contra o doping por meio de um módulo utilizado como parte de seus treinamentos.
+QD: Qual é a responsabilidade dos atletas e das comissões técnicas em relação à ingestão de substâncias proibidas?
Mariana Araújo: É dever pessoal do atleta garantir que nenhuma substância proibida entre em seu corpo.
O atleta é o responsável por qualquer substância proibida, seus metabólicos ou marcadores encontrados em suas amostras. Ou seja, não é necessário demonstrar intenção, culpa, negligência ou uso consciente para que seja estabelecida uma violação de regra antidopagem.
No direito desportivo, esta definição é conhecida como princípio da responsabilidade estrita do atleta (“strict liability”).
O atleta também é o responsável pela escolha da sua equipe médica e de informar a tais profissionais que não pode consumir qualquer substância proibida ou especificada. Por fim, o atleta também será responsável pela conduta das pessoas de seu círculo de associados a quem confie acesso a sua alimentação. Isso inclui cônjuges, treinadores, familiares etc.
+QD: Como o Princípio da Responsabilidade Estrita Objetiva afeta a defesa dos atletas acusados de doping durante os Jogos Olímpicos?
Mariana Araújo: Quando posto em prática, o princípio da responsabilidade estrita objetiva pode auxiliar ou não o atleta, haja vista o ônus de provar como e por que motivo a substância proibida ou especificada entrou em seu organismo será sempre do atleta – tarefa, esta, que, muita das vezes acaba não sendo fácil de se comprovar.
Sendo assim, para que possa produzir uma boa defesa, o atleta terá de demonstrar de forma satisfatória para o Tribunal como a substância entrou no seu organismo, que ele não teve culpa significativa ou, em determinadas circunstâncias, que não tinha a intenção de melhorar o seu desempenho desportivo.
+QD: Quais são os principais desafios no combate ao doping no esporte?
Mariana Araújo: O maior desafio relativo ao doping no esporte é a quantidade de atletas que ingerem substâncias proibidas ou especificadas de forma acidental, isto é, sem saber que estão consumindo algo que é proibido, porquanto considerado doping. Somado a esse ponto está, ainda, a falta de educação preventiva contra o doping.
É necessário que seja criada uma cultura em que não apenas os atletas, mas todo seu staff e comissão saibam e entendam as substâncias e métodos que não podem fazer parte do dia a dia dos atletas e/ou dos momentos de testes antidoping.
A Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo, costuma realizar palestras para os jogadores (principalmente os mais jovens) alertando sobre todos os riscos que envolvem a dopagem. Porém, não são todas as confederações que possuem esse comportamento e verba para realizar iniciativas desse tipo.
Além disso, os custos para realização dos testes antidopagem acabam sendo muito elevados e somente as modalidades mais afortunadas conseguem fazê-lo de maneira corriqueira, como é o caso do futebol.
Por fim, o último desafio no combate ao doping diz respeito à questão do acesso dos atletas ao TAS/CAS. Isso porque os valores das arbitragens perante a corte são bastante elevados. A maioria dos atletas acaba não tendo condição financeira para recorrer ao órgão. Isso faz com que os atletas não consigam ter acesso à possibilidade de uma defesa plena.
+QD: Como a sociedade como um todo pode apoiar iniciativas que promovam um esporte mais justo e limpo?
Mariana Araújo: Por meio da educação. Educar a nova geração de atletas e seus familiares é essencial para a difusão da mensagem de um esporte limpo e para a conscientização de que a utilização de substâncias proibidas no esporte não apenas macula a integridade da competição como pode prejudicar – e muito – a saúde de quem as utiliza.