Elizabeth Vilella
Florianópolis é nacionalmente conhecida com a “Ilha da Magia”, por conta de suas belezas naturais, qualidade de vida e hospitalidade. Mas há momentos em que a tão propalada magia se esvai, e a cidade encantada revela um lado sombrio.
A instalação, por determinação da prefeitura da cidade, de um posto de triagem na rodoviária para identificar e devolver pessoas que chegam sem emprego ou moradia não é apenas uma política equivocada — é uma afronta constitucional e um retrato fiel do autoritarismo social que insiste em se disfarçar de gestão pública.
A medida e sua interpretação autoritária
O posto foi criado para “abordar e encaminhar” passageiros que chegam à capital catarinense em busca de oportunidades, oferecendo-lhes uma “passagem de volta” ao local de origem.
O prefeito Topázio Neto afirmou em suas redes sociais que “quem vem para Florianópolis precisa respeitar as nossas regras e a nossa cultura”. A fala, ainda que envolta em verniz administrativo, expressa o conteúdo real da medida: um projeto de exclusão travestido de assistência social. Não se trata de acolher, mas de conter; não de integrar, mas de devolver.
Essa política carrega em si uma presunção perigosa: a de que o poder público pode definir quem pertence à cidade e quem deve ser afastado dela. No instante em que o Estado se arroga o direito de decidir quem pode ou não permanecer em determinado território, rompe-se o pacto democrático e instaura-se um regime de discricionariedade sobre o corpo social.
O que diz a Constituição
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XV, é inequívoca: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz”. Nenhuma autoridade local tem competência para restringir esse direito. O município não é ente migratório. Não há base legal que autorize a triagem de cidadãos brasileiros conforme sua condição econômica, muito menos que permita o retorno forçado sob o pretexto de falta de moradia ou emprego. Ao fazer isso, a prefeitura viola direitos fundamentais, o princípio da dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os cidadãos.
A iniciativa ainda afronta o artigo 23 da Carta Magna, que impõe à União, aos Estados e aos Municípios o dever comum de combater as causas da pobreza e promover a integração social. O prefeito de Florianópolis faz o contrário: transforma a pobreza em critério de exclusão.
Preconceito social travestido de gestão
A postura da prefeitura, ao justificar a devolução de pessoas que chegam à capital “sem emprego” ou “sem endereço fixo”, revela mais do que uma política de contenção: expõe o imaginário elitista que sustenta a “magia” de Florianópolis. Por trás do discurso de ordem e pertencimento, manifesta-se uma xenofobia interna, que repele o migrante pobre, idoso ou vindo de outras regiões, em especial “as de cima”, transformando vulnerabilidade em incômodo social.
A assistência social, cuja função constitucional é acolher e proteger, foi convertida em filtro de exclusão. Um mecanismo que seleciona quem pode ou não permanecer na cidade. O que deveria ser política pública de amparo tornou-se instrumento de controle, desvirtuando a essência humanista que orienta o Estado Democrático de Direito.
A tentativa de manter uma cidade limpa e homogênea, voltada ao turismo e ao capital imobiliário, evidencia o preconceito de classe que molda essa gestão. A “Ilha da Magia” preserva sua imagem à custa da negação do outro — aquele que não consome, que não pertence ao cartão-postal e, por isso, deve ser devolvido.
A exclusão como prática do poder público
A inconstitucionalidade da conduta é formal e material. Fere o direito de locomoção, o princípio da igualdade, a dignidade da pessoa humana e a competência federativa. Mas há também um efeito simbólico igualmente grave: o de naturalizar a exclusão como prática legítima do poder público. Quando a cidade que se orgulha de sua diversidade passa a selecionar quem pode entrar, ela abdica de seu próprio caráter democrático.
A Defensoria Pública de Santa Catarina instaurou procedimento administrativo para apurar a legalidade da ação, evidenciando o que já é cristalino: não se trata de uma controvérsia administrativa, mas de um ataque frontal ao Estado de Direito. A triagem de migrantes na rodoviária é o sintoma visível de uma lógica que prefere esconder a miséria a enfrentá-la.
A cidade que devolve gente
Uma cidade que devolve gente é uma cidade que renuncia à sua humanidade. É a negação do próprio conceito de cidade como espaço de encontro, de mobilidade e de pluralidade. Florianópolis, ao adotar essa prática, substitui a política social pela política do medo. O medo de ver o outro, o medo de dividir o espaço, o medo de reconhecer que a desigualdade é estrutural e não pode ser solucionada pela exclusão.
A região mostra, assim, seu lado obscuro: o poder público que transforma vulnerabilidade em ameaça. O gesto de devolver pessoas por serem pobres é a confissão de uma cidade que não quer se olhar no espelho.
Expulsar cidadãos brasileiros sob o argumento de que “não têm emprego” ou “não têm onde ficar” é mais do que uma ilegalidade, é um retrocesso civilizatório. A prefeitura que se comporta como posto migratório rasga a Constituição e esvazia o sentido de cidadania. O direito de ir e vir, a dignidade humana não são favores: são cláusulas pétreas do nosso pacto democrático.
A verdadeira magia de uma cidade não está em esconder sua pobreza, mas em transformar desigualdade em solidariedade. Enquanto Florianópolis continuar devolvendo gente, continuará perdendo sua alma e toda a sua magia.
