Renan Salinas
Durante séculos, o contrato foi o símbolo máximo da segurança jurídica. Redigido por advogados, assinado com solenidade, reconhecido em cartório e arquivado com zelo. Era quase um ritual. Mas, como tudo no Direito, esse ritual começa a se transformar diante da avalanche tecnológica que redefine a forma como as relações humanas – e jurídicas – acontecem. Hoje, não é exagero dizer que o contrato do futuro não será redigido em Word, tampouco assinado com caneta. Ele será um conjunto de códigos autônomos rodando numa blockchain, executado por robôs e fiscalizado por algoritmos.
Os smart contracts, ou contratos inteligentes, representam essa ruptura. Programados para executar automaticamente cláusulas pré-definidas, sem necessidade de intervenção humana, eles já vêm sendo usados em operações que vão desde o aluguel de veículos até o financiamento de imóveis. Na prática, é o fim da frase “conforme combinado”, porque tudo o que foi combinado já está automatizado, registrado e imutável em blocos criptografados.
O contrato entra na era do algoritmo
Mas não é só a blockchain que está mudando o jogo. A Inteligência Artificial está entrando onde antes só entrava a caneta do advogado: na redação e revisão de contratos. Ferramentas de IA já conseguem analisar cláusulas, sugerir correções, detectar riscos jurídicos e apontar incoerências com base em milhares de documentos similares. Isso reduz não só o tempo de análise, mas também a margem de erro humano. E aqui não estamos falando de futuro. Estamos falando de presente em grandes escritórios e departamentos jurídicos ao redor do mundo.
Mais do que isso: Robotic Process Automation (RPA) — a automação de processos repetitivos — tem sido usada para verificar o cumprimento de cláusulas contratuais, emitir alertas de vencimento, calcular multas e até acionar mecanismos legais automaticamente, sem um advogado precisar abrir o contrato. É como ter um robô paralegal trabalhando 24/7, sem café, sem sono e sem procrastinação.
O novo papel do advogado
E o que isso tudo significa? Que estamos diante de uma descentralização silenciosa do papel jurídico tradicional. Quando contratos se autoexecutam, quando cláusulas são fiscalizadas por bots, quando a negociação passa por plataformas e não por e-mails, a função do advogado deixa de ser a de operador do Direito para se tornar a de curador estratégico. Menos operacionais, mais analíticos. Menos redatores, mais arquitetos de confiança digital.
Isso naturalmente levanta dilemas éticos e jurídicos. Quem é responsável por um contrato que se autoexecuta e gera um prejuízo por erro de programação? O que acontece quando um contrato inteligente entra em choque com leis locais? Como garantir o devido processo quando tudo acontece sem intervenção humana? A resposta ainda está em construção — e justamente por isso, os profissionais do Direito precisam estar à mesa onde essa nova gramática jurídica está sendo escrita.
Do papel à confiança programada
O futuro dos contratos não será apenas mais eficiente. Será mais impessoal, mais preciso e, paradoxalmente, mais complexo. A automação não elimina o Direito, mas redefine seu papel. Os advogados que entenderem isso cedo deixarão de ser os últimos a revisar o contrato e passarão a ser os primeiros a desenhar os sistemas que o fazem funcionar.
Porque, no fim, contrato é confiança. E o que estamos vendo é a confiança migrando do papel para o código. O advogado do futuro será aquele que souber traduzir princípios jurídicos em algoritmos – e, ao fazer isso, continuar garantindo o que sempre foi sua missão: segurança, previsibilidade e justiça.