Como o direito garante que o rosa seja o tom da Barbie

Proteger a sua marca vai muito além do registro e passa por construir um conjunto de ativos de propriedade intelectual
Manifestação dos fãs nem sempre fere os direitos de propriedade intelectual - Divulgação

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Ana Busch e Renato Cirne

O que o sucesso de Barbie pode nos ensinar sobre marcas, sobre os relacionamento dos fãs com seus objetos de desejo e a exploração comercial de produtos e serviços inspirados nas tendências da moda? O filme que estreou há pouco mais de um mês não para de bater recordes. Nesta semana, o longa-metragem ultrapassou a marca de US$ 1,34 bilhão nas bilheterias.

Com esse resultado espetacular, a moda Barbiecore pintou o mundo de rosa. Não de qualquer rosa, mas de um tom especial, o pink barbie, que junto com outros ativos intelectuais compõe um conjunto que caracteriza uma das marcas mais famosas do mundo.

Mas como proteger esse legado e ao mesmo tempo garantir o direito de expressão dos milhares de fãs tomados por uma onda de nostalgia? Indo além: como garantir a integridade da marca em escala mundial, envolvendo tantas legislações distintas. 

Para falar sobre o assunto, as advogadas especializadas Flavia Tremura e Larissa Pietoso, do escritório Kasznar Leonardos, que tem mais de cem anos de atuação na área de propriedade intelectual, responderam por e-mail a uma entrevista exclusiva para o +QD.

+QD: Com o lançamento do filme da Barbie, surgiu a Barbiecore, uma tendência não somente estética, mas também de celebração cultural da feminilidade, da autoexpressão e de nostalgia de quem ainda guarda um espaço carinhoso para a personagem em suas memórias afetivas infantis. Como o direito pode balancear e proteger a liberdade de expressão dos fãs da Barbie, sem deixar de proteger os titulares de direitos autorais e de imagem?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: O direito pode balancear a liberdade de expressão dos fãs da Barbie em conjunto com a proteção dos direitos autorais e de imagem, sendo que a principal chave para isso é a menção a que se refere o material, ou seja, a utilização sempre fazendo referência a seu titular, e a sua veiculação de forma que não figure uso comercial ou reprodução – ainda que em redes sociais.

Isso porque os fãs ainda estarão se expressando e resguardando os direitos em questão, uma vez que fazem menção aos titulares e não os veiculam comercialmente ou reproduzem o material de qualquer forma.

No Brasil, o direito autoral é regulamentado pela Lei nº 9.610/98 e protege o autor de direitos autorais e quem os explora licitamente. A proteção da imagem tem por fundamento os princípios gerais do direito civil e a liberdade de expressão é assegurada pela Constituição Federal.

Para se balancear a liberdade de expressão dos fãs – que acabam validando toda a estratégia de marketing da empresa – e os direitos dos titulares, alguns aspectos podem ser levados em consideração.

O uso justo (fair use) assegura o direito ao uso desde que não tenha qualquer caráter comercial, ou seja, o usuário não terá proveito econômico decorrente desse uso.

Um exemplo é a citação de trechos da obra para fins educativos ou informativos. A paródia é outro recurso protegido por meio da liberdade de expressão, e a menção a personagens para fins humorísticos tem proteção, desde que não prejudique a imagem e a reputação do autor ou dos personagens.

Caso haja a intenção de explorar comercialmente determinado aspecto do filme, o titular do direito deve ser contatado visando a obtenção de uma licença, que pode ser dada em caráter gratuito ou oneroso, ou simplesmente negado.

+QD: Margot Robbie, protagonista do filme, se tornou nas últimas semanas a atriz mais bem paga de Hollywood. Isso mostra a potência da marca. Que mecanismos legais devem ser aplicados para proteger não somente os direitos autorais, mas também de imagem dos autores, sem proibir liberdades de expressão individual ou até corporativas que sejam somente inspiradas no filme?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: Uma obra audiovisual, como o filme da Barbie, possui diversos direitos envolvidos, não apenas quanto à marca Barbie em si, mas a personagem (boneca), o autor do roteiro, o produtor, o direito dos músicos, os atores e todos os titulares de direitos conexos envolvidos na obra.

Cada um desses envolvidos possui direitos próprios protegidos, dentre outros, pela Constituição Federal, pela Lei de Propriedade Industrial, pela Lei de Direitos Autorais, pelo Código Civil e pode, em princípio, buscar proteção.

Por outro lado, as liberdades de expressão individual, dentro dos limites permitidos pela lei, são bem-vindas e acabam alavancando ainda mais a estratégia publicitária.

No entanto, a partir do momento em que o usuário individual ou a empresa explora esses direitos alheios em benefício próprio e sem autorização, o titular do direito potencialmente ofendido pode buscar os meios legais para impedir o uso e a exploração indevidos. 

+QD: No Brasil, a marca Barbie foi declarada como de alto renome pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial em 2015. O que caracteriza uma marca de alto renome?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: As marcas de alto renome são aquelas que adquirem tamanha fama que transcendem o seu segmento de mercado, merecendo uma exceção ao princípio da especialidade para serem protegidas em todos os ramos de atividades.

O reconhecimento da marca de alto renome perante o Instituto Nacional de Propriedade Industrial depende da comprovação do reconhecimento de marca por ampla parcela do público em geral, a qualidade, a reputação e o prestígio associados pelo público à marca e o grau de distintividade e a exclusividade da marca, como dispõe a resolução 107/2013 do INPI.

+QD: Além dos fãs, muitos empreendedores criaram produtos inspirados na boneca. Tratando-se de uma marca registrada da Mattel, esses empreendedores poderiam ser impedidos de promover os produtos?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: O registo de marca é um direito real de propriedade e se divide em duas esferas: o direito de uso exclusivo para os produtos e serviços para os quais foi registrada e o direito de proibir o uso indevido da marca por terceiros.

No caso da marca Barbie, que é de alto renome, a Mattel poderia adotar medidas como o envio de notificação e até mesmo uma ação judicial contra aqueles que, sem autorização, utilizam a marca Barbie para promover seus produtos ou serviços no mercado.

+QD: Quais são os limites dessas ações comerciais individuais ou coletivas inspiradas no filme?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: É importante ter em mente que qualquer ação que envolva o filme da Barbie tem correlação com os direitos autorais bem como marcários da produção, de forma que os limites das ações, no seio comercial, independentemente se individuais ou coletivas, devem ser feitas mediante autorização do titular do respectivo direito. Caso contrário, caracteriza-se infração de direitos com reflexos civis e até mesmo criminais. 

+QD: A obra audiovisual é uma produção coletiva, que envolve muitos agentes. Como lidar com essa cadeia de direitos ou chain of title, como se chama nos países onde há legislação em vigor nesse sentido?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: A gestão das cadeias de direitos é essencial para que qualquer produção audiovisual consiga ser executada, vinculada e comercializada sem qualquer impedimento legal. Isso porque, é a etapa prévia que assegura que todos os documentos que tangem a obra audiovisual, assim como todas as pessoas envolvidas no seu processo de criação, estão nos termos corretos para que o material seja exibido.

Nos Estados Unidos, a figura legislativa que existe nas cadeias de direito, e mitiga a necessidade de envolvimento de muitos agentes e a realização de diversas transações e verificações documentais, é a o conceito de work made for hire, no qual o material de propriedade intelectual produzido pelo empregado é de titularidade do empregado, de forma que não há necessidade de convenção e contratos adicionais entre as partes, contudo, no Brasil tal figura não existe

A Lei de Direitos Autorais, no entanto, estabelece que as normas relativas ao direito do autor também se aplicam aos direitos conexos, ou seja, dos artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão.

Tratando-se de uma obra coletiva, é importante que os interessados estipulem contratualmente todas as condições de exploração da obra, o que torna a cadeia de direitos, uma etapa mais complexa. Além disso, a Lei de Direitos Autorais assegura a proteção às participações individuais em obras coletivas, atribuindo ao organizador da obra coletiva a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra.

+QD: Pensando por um outro ângulo, como proteger direitos autorais e de imagem em escala mundial, com tantas legislações nacionais distintas envolvidas?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: No cerne de direitos autorais e de imagem, o Brasil é signatário, junto a outros 180 países, da Convenção de Berna, que estabelece regras e normas para comuns para a proteção dos direitos autorais e de imagem atinentes a todos os países signatários. Assim, a despeito das especificidades de cada país, existe uma linha dorsal  comum quanto aos principais aspectos da proteção autoral.

Para a maior proteção do direito autoral, é importante consultar um especialista em direitos autorais para assegurar que os requisitos mínimos de proteção nos diversos países sejam observados, evitando-se que o titular dos direitos fique desprotegido.

+QD: Qual o papel da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) em consolidar e buscar a cooperação entre seus países membros?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: O principal papel da OMPI em consolidar e buscar a cooperação entre os seus países membros é por meio da possibilidade de troca de informações, assim como a construção de sistemas legais que se conversem.

Tanto que, a OMPI tem papel como mediadora quando da assinatura de Tratados Internacionais, apresentando então os meios pelos quais os países deverão cooperar, de forma que não seja apenas um objetivo.

Nesse sentido, ainda é válido destacar que a OMPI não apenas acompanha e segue com a produção de Tratados Internacionais relacionados a direitos autorais, como estuda as alterações sociais que os tange, de forma que vem acompanhando a inovação e afins.

Nesse sentido, é válido destacar que o primeiro Tratado sobre o tema, a Convenção de Berna é de 1886, mas a Organização vem estipulado novos, em especial graças ao recorte de novas tecnologias e ativos de propriedade industrial, como o Acordo de Direitos Autorais de 1996, derivado da Convenção em questão, que versa sobre a proteção dos direitos autorais frente a softwares e programas, por exemplo, e lhes confere determinados direitos econômicos.

 +QD: Para finalizar, quais seriam as três lições de propriedade intelectual que a Mattel nos ensina com a marca Barbie?

Flávia Tremura e Larissa Pietoso: 1. Invista no registro de marcas. A marca Barbie está registrada no Brasil desde 1982, e os direitos decorrentes do registro conferem a possibilidade da concessão de licenças de uso, ao exemplo das diversas parcerias realizadas pela Mattel, que culminaram em uma projeção de US$ 950 milhões de lucro em 2023.

2. Invista na publicidade e na divulgação de sua marca. Não basta ser detentor do registro. A marca deve ser utilizada e promovida no mercado, ampliando o seu conhecimento pelo consumidor e se tornando mais valiosa.

3. Crie um conjunto de ativos de propriedade intelectual para o seu negócio. A marca Barbie não é apenas composta pelo nome, mas também de características muito marcantes como o uso de tons específicos da cor rosa (pink barbie), o logo característico, entre outros. Esse conjunto de direitos é comumente denominado trade dress.

Ana Busch

Ana Busch é jornalista, com mais de 30 anos de experiência em Redações e sócia do +QD. Em 1999, fundou a Folha Online, que dirigiu até a integração com a Redação do jornal impresso. Também foi Diretora de Redação da Bússola, na Exame. Fundou e dirige a TAMB Conteúdo Estratégico.

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