Marcos Kirst
A visão incompleta do mundo e dos valores da cultura é a negação de um direito inalienável do cidadão que, por natureza, é incapaz de ficar as vinte e quatro horas do dia sem momentos de entrega ao “universo fabulado”, como ensina o sociólogo e crítico literário Antônio Candido.
Mentalmente criamos intermináveis histórias em torno de nós, da nossa realidade e do mundo que idealizamos.
Para Candido, “a literatura é tudo aquilo que tem toque poético, ficcional ou dramático nos mais distintos níveis de uma sociedade, em todas as culturas, desde o folclore, a lenda, as anedotas e até as formas complexas de produção escritas das grandes civilizações. A literatura é o sonho acordado da civilização”.
Embora a literatura se imponha naturalmente à vida cotidiana pelo inconsciente coletivo, pela oralidade ou pela constante idealização dos nossos desejos, é quase despercebida por todos que não foram instruídos para a leitura do invisível.
Imaginação, esperança, memória, visão crítica, capacidade de fabulação são vistas por muitos como inutilidades que não produzem impactos econômicos na vida prática.
As vozes do mercado têm mais potência para nos afastar da leitura e da literatura do que as políticas públicas da Educação têm para promover o letramento, a inclusão, o engajamento e a formação de novos leitores.
A literatura ficcional se alimenta da história, da mitologia, da utopia, do desejo, do sonho. Precisamos sonhar também de olhos abertos, conviver com personagens literários que irão nos entreter, inspirar e encantar com suas aventuras e desventuras, criar e revelar universos onde existe o que ainda não existe no nosso mundo incompleto e desordenado, embora repleto de seres reais e imaginários, frutos da fantasia que criamos ou absorvemos de outros criadores.
Mesmo quando ignoradas, negadas ou desprezadas, a literatura, a poesia e a arte estão entre nós porque porque vivem em nós durante as 24 horas de cada dia.
São elas que fizeram a humanidade ver a luz que se irradiava fora da caverna. Saindo do mundo das trevas, gradativamente nos humanizamos, civilizamos e formamos a cultura que hoje nos distingue dos animais.
O valor da literatura
E qual é a serventia prática de buscar mundos fictícios, porventura enganosos, em meio ao caos que vivemos no mundo real, onde quase não temos palavras para justificar o que nos rodeia? Como atribuir valor ao intangível? Como aplacar nosso medo, como romper nossa inação, nosso imobilismo diante de tantas divergências que parecem não fazer sentido e paralisam nossas aspirações?
A leitura pode facilitar o entendimento da realidade aparentemente sem saída pelo diálogo compartilhado por todos os atores para reduzir dissonâncias, divergências e reconhecer valores em crenças civilizatórias distintas em busca de novos consensos e oportunidades de ação.
Diante da perplexidade, conte sempre com a força da imaginação. O ilimitado motor de todas as ficções pode criar soluções inéditas para os males internos e externos que nos afligem desde que o mundo é mundo.
O primeiro degrau da cidadania
O ato de ler oferece acesso ao que ainda desconhecemos. E isso muitas vezes é surpreendente. A leitura descortina novos horizontes para a vida humana e confere dimensão extraordinária ao que ainda é incógnita. É o primeiro degrau da cidadania.
A liberdade plena vem pela assimilação crítica do repertório lido, pelo domínio da palavra como expressão de autonomia e pelo poder que a escrita confere ao indivíduo.
A leitura e a escrita organizam a oralidade, dão forma, acumulam, organizam e consolidam o conhecimento humano. São instrumentos de transformação social.
Tomás de Aquino observou que Agostinho recomenda em “A Doutrina Cristã” que “alguém versado nas palavras deveria usá-las para ensinar, para deleitar e para transformar; isto é, ensinar o ignorante, deleitar o enfastiado e transformar o indolente”.
A literatura vive e não se esgota em poucos livros e em pouco tempo. Por isso, autores continuam reprisando os mesmos temas, como amor, traição, ciúme, imortalidade, ódio, pecado, culpa, vingança, guerra, cada um deles lançando um olhar original a essas questões humanas universais e permanentes.
Encontramos na leitura literária incríveis portais que se abrem para outros mundos, onde existem bálsamos utilizados há séculos para curar dores e aflições que castigam a nossa alma, que mesmo sendo bizarras, certamente não são inéditas.