João Antonio de Albuquerque e Souza
No universo do futebol, onde cifras milionárias se misturam com paixões inflamadas, é fácil esquecer que, por trás de contratos robustos e negociações acaloradas, existem trabalhadores. Sim, jogadores de futebol são, antes de tudo, profissionais que vendem sua força de trabalho – ainda que essa força envolva defesas, dribles e gols. Quando esse princípio básico se perde em meio a cláusulas contraditórias e interesses institucionais, a justiça precisa agir para reequilibrar o jogo.
Direito x liberdade
O caso do lateral Lucas Esteves com o Vitória expõe, de forma clara, um debate que o futebol brasileiro insiste em postergar: até onde vai o direito do clube e onde começa a liberdade do atleta? A situação ganhou as manchetes após o Vitória se recusar a liberar o jogador, mesmo após o pagamento da cláusula indenizatória estipulada em contrato. O argumento? Uma cláusula que dava ao clube o direito de vetar a transferência, mesmo com o pagamento da multa, desde que pagasse ao atleta um valor significativamente inferior ao estipulado para sua liberação. Um dispositivo que, à primeira vista, soa como uma tentativa velada de controle sobre o futuro profissional do atleta.
Esse assunto importa porque trata da liberdade profissional dos jogadores de futebol e da necessidade de garantir que contratos respeitem direitos trabalhistas básicos. Se cláusulas abusivas forem aceitas, o esporte pode retroceder a um tempo em que clubes tinham controle excessivo sobre atletas, ferindo sua autonomia e dignidade profissional.
Por que isso importa?
A Justiça do Trabalho concedeu uma liminar garantindo a liberação de Lucas Esteves, reconhecendo que o direito de o trabalhador decidir sobre sua trajetória profissional é inegociável. E, nesse contexto, devemos comemorar a decisão. Afinal, desde o fim do “passe”, extinto pela Lei Pelé em 1998, clubes não podem mais amarrar jogadores por mecanismos que funcionem como travas disfarçadas. A lógica é simples: o clube tem o direito de receber indenização pela rescisão contratual – e nada além disso.
Esse tema interessa a jogadores, dirigentes, advogados trabalhistas e torcedores que se preocupam com a justiça no futebol. Além disso, impacta o mercado esportivo como um todo, pois define limites para negociações e garante que os clubes sigam regras que respeitem os direitos dos atletas dentro e fora de campo.
Para quem esse assunto interessa?
Poder
Mas por que, então, cláusulas como essa ainda aparecem em contratos? Em parte, pela constante tentativa de alguns clubes de manter uma espécie de poder de barganha sobre o destino dos atletas, mesmo que isso contrarie o espírito da legislação trabalhista. No caso de Lucas Esteves, o Vitória buscou amparo em uma cláusula que, embora escrita no contrato, fere princípios básicos do direito do trabalho. É a velha estratégia de testar os limites legais até que alguém decida contestá-los.
Esse episódio não é um ponto fora da curva. Ele expõe uma fragilidade no sistema esportivo brasileiro: a convivência entre contratos particulares e legislações que, por vezes, tratam-se como meras sugestões. Quando um clube acredita que pode impedir a movimentação de um jogador mesmo após o pagamento de uma multa prevista em contrato, o que está em jogo não é apenas uma transferência frustrada – é a autonomia do atleta sobre sua carreira.
Há também um elemento ético nesse debate. Por maior que seja a tradição ou a torcida de um clube, ele não tem o direito de controlar o futuro de um jogador. O futebol é um negócio, sim, mas também é um ambiente de trabalho. E, nesse ambiente, regras mínimas de respeito ao trabalhador precisam ser inegociáveis.
Contrato x Justiça
O Vitória pode até argumentar que a cláusula fazia parte do contrato assinado por ambas as partes. Mas nem tudo o que está em um contrato é, automaticamente, válido perante a lei. A Justiça do Trabalho reconheceu isso ao conceder a liminar a Lucas Esteves. Se cláusulas abusivas forem naturalizadas, corremos o risco de retroceder a um cenário onde clubes voltam a ter um controle quase absoluto sobre o destino dos jogadores, como no período pré-Lei Pelé.
Há mais de duas décadas, o futebol brasileiro aboliu e afastou o instituto do passe. No entanto, alguns clubes ainda insistem em reproduzir cláusulas contratuais restritivas e, portanto, nulas, como a mais recente envolvendo o atleta Lucas Esteves.
O futebol precisa, urgentemente, rever seus limites contratuais à luz dos direitos fundamentais do trabalhador. Um atleta deve ter a liberdade de aceitar novos desafios, de buscar oportunidades e de construir sua trajetória profissional sem que cláusulas obscuras o impeçam. Ao clube, cabe receber a indenização acordada e seguir em frente – sem amarras disfarçadas ou tentativas de controle dissimuladas.
A vitória de Lucas Esteves na Justiça não é apenas dele. É um recado claro ao mercado esportivo: liberdade profissional não se negocia. Qualquer cláusula que tente restringi-la é uma afronta aos direitos básicos do trabalhador. No fim das contas, o campo de jogo deve ser livre não apenas para os dribles, mas também para as escolhas.