Morvan Meirelles Costa Junior e Ricardo Rondino
O cenário tributário brasileiro tem sido palco de intensos debates e propostas de reforma, visando a simplificação do sistema, o aumento da arrecadação e a suposta promoção da equidade fiscal. Dentro desse contexto, o Projeto de Lei nº 1.087/2025 (PL), emerge como uma peça fundamental na estratégia governamental de ajuste fiscal, notadamente no que tange à tributação das altas rendas e, como contrapartida, à isenção de imposto de renda para faixas de menor rendimento.
No cerne das discussões, e como um dos pilares de compensação da desoneração fiscal proposta, reside a reintrodução da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos, encerrando um período de isenção que perdura desde 1996.
Contudo, ante a iminência da tributação sobre os dividendos, o PL apresenta uma particularidade: a possibilidade de distribuição de lucros acumulados sem a incidência da nova tributação mínima para pessoas físicas e/ou do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), desde que cumpridas algumas condições, como a realização de deliberação societária sobre a distribuição de dividendos até 31 de dezembro de 2025 e o seu efetivo pagamento até 2028.
A “benesse” legislativa e seus riscos jurídicos
Essa “benesse” legislativa pretende em teoria minimizar o impacto imediato da nova sistemática. Entretanto, o que a princípio se apresenta como um “benefício”, revela-se, sob uma análise jurídica e contábil, um intrincado labirinto de ilegalidades, inconstitucionalidades potenciais e, sobretudo, dificuldades técnicas operacionais.
Nesse sentido, um dos pontos críticos do PL reside em potencial violação ao princípio da irretroatividade da lei tributária, fundamental para a segurança jurídica. A Constituição Federal (artigo 150, inciso III, alínea “a”), veda expressamente a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.
Ocorre que o PL, ao condicionar a não tributação retroativa de lucros acumulados até dezembro de 2025, via o estabelecimento de regras restritivas, dá evidente margem a questionamentos sobre possível ofensa ao princípio da irretroatividade das normas. A “benesse” de distribuição sem IR nos exercícios de 2026, 2027 e 2028, desde que a deliberação ocorra até 31 de dezembro de 2025, impõe uma condição temporal para o aproveitamento de um regime que, em tese, deveria ser irrestrito para fatos geradores pretéritos.
Se o lucro foi gerado em 2025, por exemplo, sob a égide da Lei nº 9.249/95, a sua natureza de rendimento isento já está consolidada. A introdução de uma condição temporal para a sua distribuição sem imposto (deliberação até 31/12/2025 e pagamento até 2028) pode ser interpretada como uma tentativa de limitar ou modular um direito já adquirido à não tributação. A irretroatividade não se limita a proibir a cobrança de um imposto novo sobre um fato passado, mas também a impedir que novas regras restrinjam direitos ou expectativas legítimas que se formaram sob a lei anterior.
A vedação de aplicação de lei superveniente a fatos pretéritos é uma garantia constitucional pétrea do contribuinte. O legislador, portanto, não teria permissão para impor obstáculos, como prazos peremptórios de deliberação, para que tal princípio seja efetivado. A exigência de uma deliberação em prazo tão exíguo para lucros que já deveriam gozar da isenção incondicionalmente, conforme a lei vigente à época de sua formação, pode ser vista como uma tentativa indireta de submeter esses lucros à nova tributação caso a condição não seja cumprida, desvirtuando a proteção constitucional.
Conflitos com a Lei das S.A. e o Código Civil
Outro ponto a se destacar é a disposição que permite a distribuição de lucros e dividendos relativos a resultados apurados até 31 de dezembro de 2025 sem retenção do IRRF, condicionada à deliberação até o final do ano e ao pagamento nos exercícios de 2026, 2027 e 2028, o que fere diretamente disposições da Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.). O artigo 205 da Lei das S.A. determina que os dividendos devem ser pagos no prazo de 60 dias da data em que for declarado, salvo deliberação em contrário da assembleia-geral, porém, em qualquer caso, dentro do mesmo exercício social em que for declarado.
Essa dissonância gera um dilema interpretativo. As empresas deverão deliberar a distribuição de lucros em 2025 e, simultaneamente, deliberar pelo não pagamento no exercício social de 2025, postergando-o para os exercícios seguintes, sob pena de infração à Lei das S.A.?
A complexidade aumenta quando se considera que tanto a Lei das S.A. quanto o Código Civil (CC) dão ao empresário o prazo de até 4 meses após o encerramento do exercício fiscal para levantar o balanço e as demonstrações financeiras, apurar e deliberar sobre a destinação do lucro do exercício, haja vista que é necessário algum tempo para que os valores sejam validados tanto pela administração quanto pelos auditores independentes. Neste cenário, é uma incógnita como será possível realizar toda essa apuração ainda com o exercício fiscal em andamento, ou seja, sem ainda ter os resultados do período.
Ressalte-se que tanto o CC quanto a Lei das S.A. atribui responsabilidade solidária dos administradores por distribuições irregulares de lucros ou dividendos, enquanto a última ainda deixa em aberto a possibilidade de apuração de responsabilidade penal quando houver indícios de danos à coletividade de investidores. Assim, a falta de harmonização legislativa cria um vácuo que exigirá análises casuísticas, a assunção de riscos desnecessários por gestores e administradores de empresas e, inevitavelmente, abrirá margem para questionamentos administrativos ou judiciais no futuro.
Considerando a “benesse” acima, não há previsão expressa e semelhante para dividendos destinados a investidores não residentes. Embora esses investidores também estejam sujeitos à retenção na fonte, a ausência de uma regra clara sobre a janela de isenção para eles cria uma lacuna que pode gerar discricionariedade na interpretação e aplicação, além de potencial desincentivo ao investimento estrangeiro.
Insegurança jurídica e necessidade de regulamentação clara
O PL, ao buscar ajustar o sistema tributário brasileiro, introduz uma série de disposições que, embora carreguem uma intenção de mitigar impactos e promover transições, são obscurecidas por profundas ambiguidades, lacunas e potenciais inconstitucionalidades. A “benesse” da não tributação de lucros acumulados se revela um presente de grego, envolto em condições que desafiam a segurança jurídica e os princípios constitucionais da irretroatividade e segurança jurídica.
As dificuldades técnicas apresentadas pelo projeto, em especial o choque com a Lei das S.A. e o Código Civil, demonstram a impreparação da legislação para a realidade empresarial.
Diante desse quadro, a atuação do Poder Legislativo e do Executivo deve ir além da mera aprovação ou sanção da lei. É imperativo que a Receita Federal do Brasil atue proativamente na promulgação de normas infralegais claras e abrangentes, que detalhem os procedimentos, esclareçam as ambiguidades e harmonizem as disposições conflitantes, dentro dos limites de sua atuação.
Ainda assim, cabe aos contribuintes considerações em prol da mitigação de riscos, especialmente o auxílio de assessoria jurídica adequada, e até mesmo buscar o resguardo de seus direitos, inclusive judicialmente, dada as ilegalidades e inconstitucionalidades potenciais.
Ricardo Rondino é sócio do Rondino Megale Advogados