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Tráfico humano e escravidão assombram trabalho em alto mar, diz especialista

Ao passar anos sem pisar em terra, vítimas do trabalho forçado não têm sequer condições de denunciar abusos afirma o scalabriniano Bruno Cíceri
O padre Bruno Ciceri, da ordem dos scalabrinianos
O padre Bruno Ciceri, da ordem dos scalabrinianos - FAO

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Ana Busch

Segundo números da ONU, 50 milhões de pessoas ainda estão sujeitas a escravidão no mundo. Os casos de trabalho análogo à escravidão na lavoura e os casamentos forçados ao redor do mundo são relativamente conhecidos. Mas pouca gente sabe que a milhares de quilômetros da costa tripulações trabalham 16 a 20 horas por dia por salários que não ultrapassam US$ 3 por dia. E muitas vezes passam meses sem receber.

Muitos desses marinheiros são vítimas de tráfico humano ou migrantes que depositaram na vida no mar a esperança de chegar a um outro lugar do mundo em buscar de melhores condições de trabalho para suas famílias.

Denunciar as condições degradantes do trabalho forçado não é simples. “Muitas vezes os marinheiros e pescadores passam dois ou três anos sem pisar em terra”, afirma Bruno Ciceri, padre scalabriniano e coautor do livro “Fishers and Plunderers: Theft, Slavery and Violence at Sea”, não editado no Brasil  (Pescadores e Saqueadores: Roubo, Escravidão e Violência no Mar, em tradução livre).

Cicere este no Brasil este mês para participar do Encontro da Rede Scalabriniana Stella Maris, um evento internacional promovido pela Congregação dos Missionários de São Carlos, para discutir temas como a escravidão contemporânea, tráfico humano e os direitos de pescadores e trabalhadores do mar, e concedeu esta entrevista ao +QD.

+QD: Quais são as principais formas de escravidão a que são submetidos trabalhadores de navios na atualidade?

Bruno Ciceri: Há muitas e variadas formas de escravidão às quais os trabalhadores estão sujeitos, especialmente no mundo marítimo. A mais comum, a que também são submetidas vítimas do tráfico humano, ocorre em barcos de pesca, onde pessoas têm que trabalhar sem receber nenhum salário, às vezes por um, dois ou três anos. 

E, frequentemente, durante todo esse período, por três anos, ficam dentro do barco de pesca, sem nunca pisar em terra firme. O trabalho realizado no barco de pesca é muito duro e contínuo. Os pescadores precisam trabalhar às vezes até 18 ou 20 horas seguidas, sem poder descansar, porque quando se encontra um cardume de peixes é preciso tentar capturar todos. E não se pode dizer estou cansado, ou não tenho vontade, ou terminei meu horário de trabalho e vou parar. Trabalha-se até que existe um único peixe no mar para capturar na rede.

+QD: Em que tipos de embarcações essas práticas são mais comuns?

Bruno Ciceri: Às vezes, até mesmo a bordo de navios comerciais, por exemplo, que transportam contêineres, petróleo ou outros produtos, temos formas que não podemos definir especificamente como formas de escravidão, mas ainda assim são formas de controle das equipes. As equipes são forçadas a trabalhar sem receber o salário por três, quatro ou cinco meses.

Muitas vezes, eles devem trabalhar em condições muito difíceis e muito perigosas para a sua saúde, para eles mesmos. Veja, isso não é propriamente escravidão, mas ainda assim são trabalhos que violam os direitos humanos e trabalhistas dessas pessoas.

+QD: De que maneira as autoridades portuárias podem detectar e intervir em casos de escravidão em navios?

Bruno Ciceri: As autoridades portuárias podem intervir nos casos de escravidão apenas quando o barco de pesca ou o navio entra no porto. Mas muito frequentemente, esses barcos de pesca ou navios permanecem no local de pesca em alto mar, longe centenas de milhas da costa, até por um ano, dois anos ou três anos.

E, portanto, só neste momento, quando o barco de pesca chega ao porto, as autoridades portuárias podem verificar e eventualmente descobrir esses casos de escravidão ou de vítimas do tráfico. Existem legislações específicas para isso e muito bem feitas e que, se usadas pelas autoridades portuárias, podem realmente libertar essas pessoas dessa vida de prisão, porque é isso que os navios representam para elas.

Existem legislações específicas para isso e muito bem feitas e que, se usadas pelas autoridades portuárias, podem realmente libertar essas pessoas dessa vida de prisão, porque é isso que os navios representam para elas.

+QD: Qual é a estimativa do número de pessoas atualmente sujeitas à escravidão na indústria marítima em todo o mundo?

Bruno Ciceri: É muito difícil ter uma estimativa das pessoas que estão empregadas a bordo dos barcos de pesca ou dos navios comerciais como escravos ou como vítimas do tráfico.

Certamente, os trabalhadores migrantes têm uma probabilidade muito alta de acabar fazendo trabalhos forçados não só em terra, mas também e sobretudo no mar. As estatísticas que nos oferece a ONU falam de números muito altos.

Falam de cerca de 50 milhões de pessoas no mundo que estão em condições de escravidão. Porém, esse número de 50 milhões também inclui pessoas submetidas a casamentos forçados, mas há também muitíssimos que são obrigados a trabalhos análogos à escravidão. É muito difícil ter estatísticas precisas para tudo isso, mas certamente esse tipo de trabalho  é uma vergonha para toda a humanidade.

+QD: Existe algum estudo que mostre em que regiões a escravidão está aumentando?

No início, quando comecei a trabalhar no mundo do mar e da pesca, pensava que as pessoas sujeitas à escravidão eram principalmente pessoas que viviam em países asiáticos ou em países em desenvolvimento.

Porém, atualmente, devo dizer que essa não é a realidade, porque mesmo em países mais desenvolvidos como a Irlanda, Escócia e Inglaterra temos pessoas que são submetidas à escravidão.

Temos indianos, egípcios, filipinos, ganenses que viajam até a Escócia, Irlanda ou Inglaterra e depois são explorados para trabalhar em barcos de pesca desses países e muitas vezes essas pessoas também são vítimas de tráfico. Então, não há uma região específica onde a escravidão na indústria marítima seja mais prevalente, é um fenômeno global.

+QD: Como as organizações internacionais, como a própria Igreja, podem contribuir para o combate a esse tipo de escravidão?

Bruno Ciceri: A Igreja sempre defendeu os direitos humanos e trabalhistas das pessoas do mar. Primeiramente, denunciando essas práticas que vão contra a dignidade da pessoa. Segundo, por meio da organização Stella Maris, que é o ministério católico a serviço dos marítimos, pescadores e suas famílias. Muitas vezes, também interveio para salvar essas pessoas nos portos e retirá-las dessas situações de perigo para suas vidas, acolhendo-as nos centros da Igreja da Stella Maris e providenciando toda a ajuda necessária para que essas pessoas pudessem receber seu salário e também voltar para casa, para seus entes queridos.

É muito importante realizar um trabalho de conscientização nas paróquias e comunidades cristãs sobre a escravidão e as vítimas do tráfico no mundo marítimo. 

As pessoas devem saber que muitas vezes o peixe que compram no supermercado ou no mercado é o resultado da exploração da vida dos pescadores, pois trabalhando muitas horas recebem um salário miserável.

Às vezes, recebem US$ 3 dólares por dia para trabalhar de 16 a 20 horas e, portanto, se contribuímos comprando esse peixe, contribuímos para manter a escravidão e o tráfico desses pescadores.

+QD: Quais são os maiores obstáculos enfrentados pelas organizações que se propõem a fazer esse trabalho?

Bruno Ciceri: O principal obstáculo neste trabalho é conseguir identificar as vítimas de trabalho forçado e de tráfico, porque geralmente essas pessoas são mantidas prisioneiras, afastadas das demais, sem a possibilidade de sair livremente no porto, encontrar outras pessoas e contar a sua história.

Muitas vezes, essas pessoas também sentem vergonha, têm medo de contar a sua história e, sobretudo, têm medo de serem novamente capturadas por esses traficantes de seres humanos e acabarem novamente como escravos e vítimas do tráfico.

Portanto, este é o maior obstáculo, conseguir identificar quem são as vítimas do tráfico. Segundo, mesmo que consigam ser identificadas, é muito difícil obter justiça. Mesmo que essas pessoas tenham sofrido por muitos anos, é sempre difícil provar que foram vítimas de escravidão e de tráfico, também porque quemescraviza usa todos os truques e métodos para não serem punidos pela lei.

+QD: O senhor é coautor de um livro que trata não apenas de escravidão, mas também de outros perigos enfrentados por trabalhadores do mar “Fishers and Plunderers: Theft, Slavery and Violence at Sea”? Quais são esses perigos?

Bruno Ciceri: São muitos os perigos que as pessoas do mar devem enfrentar além da escravidão e do tráfico de pessoas. Temos, em primeiro lugar, a própria  natureza, que pode ser muito perigosa, especialmente quando se está em um pequeno barco de pesca em meio ao mar e uma tempestade se desencadeia, com o risco de o barco afundar. É um risco de vida.

Outro problema é ficar longe das famílias por um, dois ou três anos. Então, há o perigo da solidão, o perigo de estar completamente isolado e distante do país de origem, da família e dos entes queridos.

Isso cria um grande impacto psicológico neles, porque nunca podem estar presentes nos momentos importantes da vida de seus filhos e da família.

Não podem estar presentes em situações de doença ou de crise, porque estão longe e não podem fazer nada. Isso coloca as pessoas do mar sob um estresse mental muito forte, porque gostariam de estar com suas famílias, gostariam de fazer algo por elas, mas infelizmente não podem.

Por outro lado, a responsabilidade pela educação dos filhos e pela casa recai toda sobre a mulher. Ela tem que ser mãe, mas também tem que ser pai, e nem sempre é fácil para as mulheres combinar esses dois papéis que, normalmente, seriam divididos. Não haveria esse problema se o pai estivesse em casa com eles.

Além disso, frequentemente, as tripulações são compostas por várias nacionalidades, e isso pode desencadear conflitos tanto em nível social quanto religioso. E muitas vezes, quando esses conflitos eclodem no espaço restrito do barco de pesca, frequentemente ocorrem até mortes.

+QD: Qual é o impacto psicológico nos trabalhadores marítimos que já enfrentaram incidentes de pirataria?

Bruno Ciceri: A pirataria e o crime comum que frequentemente atacam navios para tentar roubar tudo o que é possível colocam um grande estresse psicológico e, às vezes, também físico na vida dos marítimos.

Porque quando esses piratas ou criminosos sobem a bordo, muitas vezes são violentos e agridem os marítimos de maneira muito forte. Os piratas tentam roubar tudo o que encontram no navio e também entram nas cabines dos marítimos, quebrando tudo para levar, talvez, o computador, ou até mesmo dinheiro.

Dessa forma, os marítimos se sentem violados em sua privacidade, pois sabemos que o navio é a sua casa. É como quando os ladrões entram em nossa casa. Não nos sentimos mais seguros, mesmo estando em nossa própria casa. Muitas vezes, esse impacto psicológico causado pelo assalto dos piratas e criminosos exige suporte psicológico a longo prazo, porque o trauma sofrido pelo marítimo é muito profundo.

+QD: No livro e também em palestras, o senhor fala muito sobre as condições de saúde mental do trabalhador do mar. Como o isolamento prolongado no mar impacta essa condição?

Bruno Ciceri: Especialmente durante a pandemia, pudemos notar como o isolamento dos marítimos, que durante aquele período não podiam desembarcar, não podiam retornar às suas famílias, os afetou. 

Esse isolamento, unido à preocupação que muitos destes marítimos tinham com suas famílias e entes queridos que talvez sofressem por causa do covid-19, levou muitos deles ao limite do suicídio.

Eles se encontravam sozinhos, sem poder compartilhar essa preocupação profunda que tinham, ou mesmo quando compartilhavam com outro membro da tripulação, este tinha o mesmo problema e, portanto, não podiam ajudar um ao outro. 

Assim, a pandemia teve um impacto muito forte, mas mesmo agora, o que consideramos importante para as condições de saúde mental do marítimo é dar a possibilidade de, quando estiver no porto, poder descer, ir a um supermercado, comprar o que precisa, sair do navio, sair dessa prisão de metal onde vive a maior parte do tempo.

A Stella Maris, com seus capelães e voluntários, tenta estar próxima dos marítimos, utilizando também as mídias sociais e estando em contato com eles através do Facebook, Instagram ou mesmo mensagens do WhatsApp. Fazer com que eles sintam que nunca estão sozinhos. Mas nós, como capelães e voluntários da Stella Maris, estamos sempre ao lado deles e podemos intervir e ajudá-los a qualquer momento que precisem.

+QD: A condição do trabalhador do mar é muitas vezes romantizada na literatura e mesmo no cinema. Mas a realidade mostra um trabalhador empobrecido. O senhor concorda?

Bruno Ciceri: É verdade que a condição do trabalhador marítimo era muito romantizada, pois se dizia “seja um marinheiro e conheça o mundo de graça”, ou “o marinheiro tem uma namorada em cada porto”.

Essas são coisas do passado, e certamente a vida do marítimo agora é muito mais complicada e difícil. Os marítimos não podem ver o mundo ou o vêem à distância do navio, pois agora os navios permanecem no porto por um período muito curto. 

Muitas vezes, navios porta-contêineres chegam pela manhã e à noite já deixam o porto para o próximo destino, então eles não podem aproveitar muito e veem o mundo em intervalor. Quando entram em um porto e depois quando partem

O mundo marítimo realmente mudou porque não existe mais a possibilidade de descer à terra para relaxar e ver as coisas.

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Ana Busch

Ana Busch é jornalista, com mais de 30 anos de experiência em Redações e sócia do +QD. Em 1999, fundou a Folha Online, que dirigiu até a integração com a Redação do jornal impresso. Também foi Diretora de Redação da Bússola, na Exame. Fundou e dirige a TAMB Conteúdo Estratégico.

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