ANPD barra a “Uber da íris” e expõe discussão sobre o futuro da identidade digital

Suspensão do Worldcoin no Brasil reacende debate sobre consentimento, vulnerabilidade econômica e proteção de dados biométricos
Após decisão da ANPD, o projeto optou por pausar suas operações no Brasil

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Renato Cirne

Poderia ser um episódio de Black Mirror: você escaneia seus olhos, recebe R$ 600 em criptomoedas e segue a vida. Essa era a proposta do projeto Worldcoin, da empresa Tools for Humanity, uma iniciativa que teria por objetivo criar uma identidade digital global. A ideia chegou ao Brasil em novembro de 2024 e, rapidamente, se transformou em fonte de renda para muita gente, especialmente na periferia, onde estabeleceu uma presença mais forte.

A expansão foi tão rápida que, em menos de um mês, 115 mil brasileiros já haviam concluído o processo de verificação. Até janeiro de 2025, mais de 500 mil brasileiros tinham fornecido seus dados biométricos.


Por que isso importa?

O caso do Worldcoin levanta questões fundamentais sobre a proteção de dados biométricos, privacidade e consentimento na era digital. A prática de oferecer dinheiro em troca de informações sensíveis pode comprometer a autonomia dos indivíduos e criar precedentes preocupantes para o uso de dados pessoais. Além disso, a rápida adesão ao projeto e os relatos de usuários que perderam acesso aos seus fundos destacam os riscos de confiar em plataformas sem regulamentação clara e mecanismos de segurança robustos.

O atrativo era a recompensadora proposta financeira: ao se registrarem, os participantes recebiam 25 unidades de Worldcoin (WLD), com possibilidade de acumular até 48,5 WLD ao longo de um ano. Em janeiro de 2025, o montante tinha valor estimado de R$ 740.

Intervenção

A ANPD interveio e, em 24 de janeiro de 2025, suspendeu a coleta de dados biométricos pela empresa no Brasil. A decisão baseia-se na preocupação de que o incentivo financeiro possa comprometer o consentimento livre e informado dos indivíduos, conforme exigido pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A medida entrou em vigor no dia seguinte e teve impacto imediato nas operações do Worldcoin no país.

O argumento é simples. Se você precisa de dinheiro e te oferecem uma grana para entregar seus dados biométricos, sua escolha é realmente livre? Ou essa oferta interfere na autonomia do indivíduo?

A LGPD exige que o consentimento seja livre, informado e inequívoco – e esse caso levanta dúvidas sérias sobre se isso estava sendo respeitado. A ANPD considerou que a vulnerabilidade econômica de muitos participantes poderia influenciar decisivamente na escolha, tornando o consentimento questionável do ponto de vista legal.


Para quem esse assunto interessa?

O tema interessa a reguladores de proteção de dados, como a ANPD, que buscam garantir o cumprimento da LGPD; a juristas e especialistas em direito digital, que analisam os impactos legais da iniciativa; a empresas de tecnologia, que lidam com desafios relacionados à privacidade e identidade digital; e à população em geral, que precisa estar consciente sobre os riscos e direitos relacionados ao fornecimento de dados biométricos para plataformas privadas.

Contrapartida

Após a decisão, o projeto optou por pausar voluntariamente suas operações no Brasil. Para muita gente, o Worldcoin acabou virando o Uber da íris, uma forma de ganhar um dinheirinho extra para completar o orçamento. Claro, sem muita discussão sobre as consequências legais.  E o pior, o sonho virou dor de cabeça. Este mês, começaram a pipocar relatos de usuários que não conseguiam acessar suas contas ou resgatar os valores prometidos.

Alguns alegaram ter sido banidos sem qualquer explicação, perdendo o acesso ao dinheiro e à identidade digital registrada na plataforma. Esses problemas levantam questões importantes sobre a segurança e confiabilidade do sistema adotado pela empresa.

A proposta do Worldcoin expõe desafios regulatórios inéditos. Em um mundo onde a digitalização da identidade parece inevitável, que limites devem ser estabelecidos para proteger os cidadãos? A proteção de dados biométricos é um tema central nesse debate. Inovação é bem-vinda, mas precisa vir acompanhada de responsabilidade.

Dados biométricos não são moeda de troca, e a proteção dos direitos dos indivíduos deve estar no centro dessas discussões.

A LGPD representa um importante instrumento nesse sentido, mas os desafios trazidos por projetos como o Worldcoin mostram que a legislação precisará evoluir para acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas.

Renato Cirne

Sócio do Renato Cirne Advogados, é conselheiro de Conformidade na ACRJ e sócio do +QD. Possui certificado de Conformidade da KPMG e CISI e ISO 37001. Também é mestre em Propriedade Intelectual e Inovação no INPI / UFRJ.

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