Renato Cirne
Nos últimos anos, o Brasil tem sido palco de uma escalada silenciosa e devastadora: a morte de crianças e adolescentes em decorrência de desafios virais compartilhados nas redes sociais. Segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo na semana passada, entre 2014 e 2025, ao menos 56 meninas e meninos, entre 7 e 18 anos, perderam a vida em razão de desafios online. A tragédia mais recente foi a de Sarah Raissa Pereira de Castro, vítima do chamado “desafio do desodorante”, que reacendeu o alerta sobre o papel — ou a omissão — das plataformas digitais.
Por que isso importa?Este debate importa porque revela uma falha grave e persistente na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. Os desafios virais que resultam em mortes não são acidentes isolados, mas sintomas de um sistema que ainda não regula com clareza a responsabilidade das plataformas. O texto denuncia a omissão do Estado e o despreparo das leis para lidar com os riscos digitais, exigindo uma resposta urgente e coordenada. A integridade física e emocional de milhões de crianças está em jogo — e cada dia sem ação aumenta o custo social de uma tragédia anunciada.
Esse tipo de conteúdo publicado livremente nas redes estimula comportamentos como asfixia simulada, automutilação e ingestão de substâncias tóxicas e circula sem qualquer barreira eficaz de moderação. Chegam aos celulares de crianças e adolescentes com a mesma velocidade com que se monetizam curtidas, views e compartilhamentos.
E seguem sendo tratados como exceção, como se fossem um desvio eventual em meio à suposta neutralidade da tecnologia.
Não são exceções. São sintomas de uma ausência gritante: a falta de governança digital voltada à proteção da infância.
O que diz a lei
Não estamos diante de um vácuo legal completo. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante, no artigo 17, o direito ao respeito, à dignidade e à integridade física e psicológica de crianças e adolescentes. O Marco Civil da Internet também oferece instrumentos jurídicos que podem ser acionados para responsabilizar tanto criadores de conteúdo quanto as plataformas, especialmente quando há omissão na retirada de conteúdos prejudiciais após notificação.
Mais que isso, a responsabilização penal por indução a práticas perigosas é possível — inclusive por homicídio, quando há evidência de incitação direta.
Mas como fazer cumprir a lei e atualizar essas normas à altura da gravidade dos fatos.
O que está em debate?
Há projetos de lei no Congresso Nacional, mas a tramitação é lenta e fragmentada. Entre eles:
- O PL 2630/2020 (apelidado de “PL das Fake News”), que prevê obrigações de transparência, rastreabilidade e deveres de cuidado por parte das plataformas — que enfrentou resistência e sucessivos adiamentos, tendo sido arquivado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, em 9 de abril de 2024.
- O PL 2628/2022, que cria regras específicas para proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, inspirado em experiências internacionais como o Online Safety Bill do Reino Unido.
Para quem esse assunto interessa?Este assunto interessa a pais, mães, educadores, pediatras, psicólogos, parlamentares e a todos que atuam na promoção e proteção dos direitos da infância e adolescência. Também é de especial relevância para formuladores de políticas públicas, pesquisadores em educação e tecnologia, desenvolvedores de plataformas digitais e operadores do direito que lidam com responsabilidade civil e penal na internet. Em última instância, interessa a toda a sociedade — porque proteger crianças online é uma responsabilidade coletiva que diz respeito ao presente e ao futuro do país.
Segurança digital
Em março de 2025, o governo federal lançou seu guia “Crianças, Adolescentes e Telas: Guia sobre Uso de Dispositivos Digitais”, com o objetivo de promover um ambiente digital mais seguro para crianças e adolescentes. O documento oferece recomendações para pais, responsáveis e educadores sobre o uso saudável das telas, abordando temas como o impacto na saúde mental, segurança online, cyberbullying e a importância do equilíbrio entre atividades digitais e interações no mundo real .
O guia também dialoga com a Lei nº 15.100/2025, que restringe a utilização de aparelhos eletrônicos por estudantes nos estabelecimentos de educação básica durante as aulas, recreios e intervalos, visando proteger a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes.
Mas, apesar dos avanços pontuais, falta uma legislação robusta, clara e específica que trate da responsabilidade das plataformas digitais no uso por crianças e adolescentes. O Brasil precisa decidir se o ambiente digital será, enfim, tratado com o mesmo rigor que escolas, praças, brinquedotecas e qualquer outro espaço público frequentado por crianças.
Isso não é brincadeira
Não há mais como fingir que se trata apenas de “brincadeira”. Não quando dezenas de famílias enterram seus filhos por causa de vídeos no TikTok, reels do Instagram ou desafios anônimos no WhatsApp.
É hora de uma resposta institucional firme, que coloque a segurança digital infantil como prioridade nacional — com regras claras para design de produto, algoritmos, moderação, monetização e transparência nas plataformas.
Enquanto isso não acontece, seguimos normalizando a exposição de nossas crianças a conteúdos que matam — e chamando de acaso o que já virou padrão.
A responsabilidade das plataformas precisa deixar de ser uma zona cinzenta. E a responsabilidade do Estado, uma promessa adiada.
É preciso agir agora. Antes que a próxima tragédia aconteça — e seja, mais uma vez, tratada como exceção.