O ex-cônjuge como “sócio do sócio”: os efeitos societários da partilha em sociedades limitadas

A separação não apenas distribui um patrimônio entre os ex-cônjuges, mas cria reflexos diretos sobre a governança
De que forma o ex-cônjuge pode ter assegurada a meação sobre participações societárias de uma sociedade da qual não faz parte?

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Rafael Ottoni Nogueira e Maria Victoria da Cunha Machado

A dissolução de um casamento ou de uma união estável pode ter grande impacto patrimonial, especialmente quando os bens comuns envolvem participações societárias, tornando a partilha mais complexa. Problemas recorrentes surgem quando o cônjuge não figura como sócio de sociedade limitada. Uma questão que se coloca é: de que forma o ex-cônjuge pode ter assegurada a meação sobre participações societárias de uma sociedade da qual não faz parte?

No regime de comunhão parcial de bens – adotado no casamento e na união estável em que o casal não tenha optado expressamente por outro regime –, as cotas sociais adquiridas na constância do casamento e da união integram o patrimônio comum do casal e, na hipótese de dissolução do vínculo matrimonial ou da união, devem ser partilhadas, seguindo a mesma lógica aplicável aos demais bens comuns adquiridos durante a união.

Contudo, isso não significa, em regra, que o ex-cônjuge – não sócio – passará a integrar o quadro social após a partilha das cotas; tampouco significa que o ex-cônjuge – sócio – sofrerá uma redução da sua participação societária. Em tais hipóteses, a separação não apenas distribui um patrimônio entre os ex-cônjuges, mas cria reflexos diretos sobre a governança, os direitos econômicos e a possibilidade (ou não) de intervenção do ex-cônjuge perante a sociedade.

As sociedades limitadas, que representam a ampla maioria de sociedades empresárias ativas no país, ostentam caráter intuitu personae, tendo a affectio societatis especial relevância, o que significa que a identidade e as características dos sócios são fatores de extrema relevância para a constituição da sociedade e continuação das atividades empresariais.

Pode-se dizer que o vínculo societário nas sociedades limitadas é, em regra, personalíssimo e não se admite o ingresso de terceiros, nem mesmo do ex-cônjuge, sem observância de regras específicas previstas na lei ou no contrato social. Contudo, ainda que o ex-cônjuge não possa ingressar no quadro societário, deve lhe ser assegurado o acesso ao valor econômico equivalente à sua meação.

Na prática, isso significa que o ex-cônjuge não pode exigir sua imediata e automática admissão no quadro social, porque os sócios remanescentes não podem ser compelidos a admitirem um terceiro na sociedade; contudo, é atribuído ao ex-cônjuge um direito econômico decorrente da participação societária sobre a qual incide o direito de meação, mediante o recebimento do valor correspondente à meação das cotas detidas em comunhão e recebimento de lucros e dividendos proporcionais, evitando a conhecida prática de blindagem patrimonial pelo ex-cônjuge sócio.

Com isso, o ex-cônjuge não sócio não adquirirá direitos políticos decorrentes do status socii e não poderá participar das deliberações sociais ou fiscalizar a administração. Essa solução preserva o quadro social, protegendo a affectio societatis, ao mesmo tempo em que preserva a atividade empresarial e o patrimônio da sociedade.

Com a partilha das cotas sociais, o ex-cônjuge ostenta os poderes de um “cotista anômalo” ou “sócio do sócio”, instaurando-se uma “subsociedade” entre ex-cônjuge sócio e ex-cônjuge não sócio, que vai perdurar enquanto não houver a liquidação da sociedade ou o efetivo pagamento dos haveres. Conforme reconheceu o STJ no julgamento do REsp nº 2.175.782/MG: “Por ocasião do divórcio, decretada a partilha das cotas sociais, o ex-cônjuge torna-se cotista anômalo: recebe as participações societárias em seu aspecto patrimonial, mas não tem o direito de participar das atividades da sociedade, pois não se torna sócio.

Em tais situações, o ex-cônjuge é tido como ‘sócio do sócio’ uma vez que não ingressa na sociedade empresária, mas instaura-se uma ‘subsociedade’ entre cônjuge sócio e não sócio. (…) Assim, sendo frutos da participação societária, deve o cônjuge não sócio participar da distribuição de lucros e dividendos correspondentes às cotas sociais comuns até a efetiva apuração dos haveres e pagamento do valor patrimonial das cotas”.

Por isso, o art. 600, parágrafo único, do Código de Processo Civil, atribuiu ao ex-cônjuge não sócio a legitimidade para requerer a apuração de seus haveres, que não terá o objetivo de dissolver ou liquidar a sociedade, mas tão somente apurar o valor correspondente à sua meação. A legislação prevê que os haveres devem ser pagos “à conta da quota social titulada por este sócio” (parágrafo único do art. 600 do Código de Processo Civil). Dessa forma, interpreta-se o dispositivo no sentido de que o ex-cônjuge não sócio possui legitimidade para apuração de haveres a fim de que sua participação societária derivada da partilha seja avaliada e paga pelo ex-cônjuge sócio.

Essa foi a solução conferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da apelação nº 1054829-07.2020.8.26.0100: “o que a lei determina é que o pagamento dos haveres deve ser feito à conta da cota social do sócio. E com razão, visto que a separação das partes é fato estranho à sociedade, gravitando na órbita dos interesses privados do sócio que não pode dividir com os demais consortes e a sociedade os ônus da dissolução do seu casamento”.

Afasta-se, assim, a pretensão de equiparar o ex-cônjuge ao sócio pleno. Não se reconhece, como regra, direito de voto, participação na administração, ingerência em deliberações societárias ou legitimidade para impor alterações contratuais, justamente porque tais prerrogativas pressupõem vontade de associar-se e vínculo pessoal com a sociedade, elementos ausentes na mera partilha decorrente da separação.

Assim, reconhecer que o ex-cônjuge é credor do sócio, e não da sociedade, assegura a satisfação do direito patrimonial do meeiro sem comprometer a continuidade da atividade empresarial. O ex-cônjuge é assim sócio do sócio, protegendo-se o direito patrimonial do primeiro e, ao mesmo tempo, a preservação da estabilidade e da funcionalidade da sociedade limitada.

Rafael Ottoni Nogueira é advogado no Yarshell Advogados

Maria Victoria da Cunha Machado

Maria Victoria da Cunha Machado é advogada no Yarshell Advogados

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