Qual a polêmica na descriminalização da maconha?

O STF está julgando a arbitrariedade decorrente do critério que diferencia traficantes de usuários
Por trás de um tema tabu, se encontram práticas graves de racismos - Wirestock

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É possível que, em breve, o STF termine o julgamento do RE 635.659 que, na prática, poderá estabelecer uma quantidade de maconha que uma pessoa pode ter consigo sem que corra o risco de configurar o crime de tráfico de drogas. E, naturalmente, a sensibilidade social do tema tem suscitado debates, críticas e até algumas confusões.

De imediato, é preciso lembrar que o legislador deixou em silêncio qual a quantidade de droga que alguém deve ter consigo para ser considerado usuário ou traficante. E, na prática, isso implica em diversos abusos e absurdos – e não sou eu quem digo isso, mas pesquisas realizadas analisando milhares de casos de prisão por tráfico de droga.

Um exemplo é que uma pessoa branca precisa ter 80% a mais de droga do que uma pessoa negra para que seja considerada traficante.

Fica ainda mais gritante a diferença quando se considera também a escolaridade: uma pessoa branca com curso superior e mais de 30 anos precisa portar um grande volume de drogas para ser considerada traficante, enquanto se for negra e semi-alfabetizada ou apenas com ensino fundamental, qualquer quantidade pequena já é suficiente para ser considerado traficante. O caso concreto que ensejou o RE 635.659, por exemplo, se trata de um homem negro, preso como traficante por portar somente 3 gramas de maconha.

Isso demonstra que o STF não está julgando inconstitucional a criminalização das drogas – por mais que se lamente a opção feita pelo legislativo (que é um modelo que já se comprovou ser fadado ao fracasso no mundo inteiro e, aqui, ainda mais), o STF respeita a opção do Poder Legislativo. O que o STF está julgando é a arbitrariedade que decorre do silêncio do critério que diferencia traficantes de usuários, e a discriminação que ocorre na prática. E, corajosamente, avança para estabelecer um critério único, que não dê espaço para o racismo estrutural.

Na prática, o que muda para o cidadão? Nada.

Ele continuará sem ter uma adequada política de conscientização dos riscos e redução dos danos, como vários países tem realizado com sucesso. Do mesmo modo, a produção e fornecimento não serão controlados pelo Estado, com uma adequada regulação sanitária que reduza danos aos pacientes usuários, tributação seletiva e geração de empregos, tal como ocorre com outras drogas.

Sim, isso poderia gerar renda ao Estado e novos empregos se tivesse optado por outra regulação, como vários países (inclusive nossos vizinhos) fizeram. Mas optamos por criar uma renda ao crime organizado ao manter tudo criminalizado.

Isso tampouco significa estímulo ao consumo. Você que me lê, costuma fazer uso recreativo da maconha? Caso não, você usaria se soubesse que não seria preso se tivesse até X gramas de maconha? Os dados de países que optaram pela descriminalização, com a organização de um mercado empresarial voltado a isso, é o de não aumento do consumo – então imagine no Brasil, em que a produção e fornecimento seguirão sendo criminalizados.

Com isso, é preciso elogiar a coragem e sensibilidade do STF em perceber que, por trás de um tema tabu, se encontram práticas graves de racismos cotidianos para pautar essa discussão.

Se os quatro votos fossem suficiente para definir a questão, nada mudaria na sua vida ou na minha, tampouco no atual funcionamento da sociedade quanto sua política criminal, apenas corrigiria uma prática histórica de descriminação.

Henderson Fürst

Henderson Fürst é advogado, doutor e mestre em Bioética e Presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP

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