Laura Cunha Gonçalves e Rodrigo Ustárroz Cantali
“Não há sociedade de consumo sem publicidade”. A afirmação é tão categórica quanto verdadeira. Na sociedade atual, especialmente em razão do avanço da tecnologia e da informatização, estamos sujeitos a uma enorme diversidade de peças publicitárias em diversos canais. Nas trocas em mercado, o ambiente negocial é dominado por palavras e imagens. As técnicas publicitárias se utilizam dos mais variados recursos (de difusão e de apresentação) para atingir a sua finalidade de informar ou influenciar pessoas.
O Direito, na importante função de regulamentar esse tema, busca limitar a publicidade por diferentes meios, e três regras constantes do Código de Defesa do Consumidor (CDC) apresentam grande importância para compreender a extensão dessa limitação:
• a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal (art. 36, CDC)
• é vedada a publicidade enganosa, que seja capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e outros dados sobre o produto ou serviço (art. 37, § 1º, CDC)
• é vedada a publicidade abusiva, entendida como aquela peça discriminatória, que incite à violência, que explore o medo ou a superstição, que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, que desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (art. 37, § 2º, CDC)
Na prática
Nota-se uma característica essencial nessa regulamentação: a utilização de uma estrutura normativa parcialmente lacunosa, a ser preenchida apenas no caso concreto a partir de padrões inferidos da prática social e do público-alvo da peça publicitária. Alguns exemplos auxiliam a concretizar essa regulamentação.
Em 2011, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) investigou publicidade realizada por uma marca de veículos que satirizou a potência de motores da concorrência, que não seria medida em “cavalos”, mas em “pôneis” e não seria capaz de evitar situações de atolamento na lama, tornando-se assim “pôneis malditos”.
À época, apesar de denúncias que alegavam que a peça seria inadequada para crianças por associar a palavra “pôneis”, do universo infantil, ao adjetivo “malditos”, o Conar considerou a peça lícita e arquivou o processo. Por outro lado, quando se trata de campanhas publicitárias de alimentos direcionada ao público infantil, que “utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil”, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui posicionamento mais restritivo, por entender que “a compra e o consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve residir com os pais”.
No último trimestre de 2023, mais uma vez a interpretação de normas consumeristas em um caso concreto foi posta ao STJ.
Exagero
O “Caso do Ar-Condicionado Silencioso” envolvia uma peça publicitária de um aparelho supostamente sem ruídos, mas que emitia alguns barulhos, o que ensejou o ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público Federal ainda em 1989 (antes da vigência do CDC) contra os fornecedores do produto. Em 1994, foi proferida sentença de procedência, que determinou a reparação de danos de consumidores e a adoção de contrapropaganda e, em 2010, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região também entendeu pela ocorrência de publicidade enganosa.
Entretanto, ao chegar ao STJ, o caso sofreu uma interessante mudança de rumo. Em votação unânime, a Quarta Turma, apesar de afastar o argumento de que não seria possível enquadrar a conduta como violadora dos direitos difusos dos consumidores diante da inexistência do CDC à época dos fatos, entendeu pela ausência de ilicitude, pois a peça publicitária configuraria mero puffing (ou dolus bonus).
O puffing nada mais é do que o uso de um claro exagero destinado a enaltecer a característica de um produto.
O melhor?
Um caso clássico e óbvio dessa prática é o uso de expressões como “o melhor produto do Brasil” ou adjetivos como “imbatível”, “perfeito” ou “insubstituível”.
No caso em questão, o STJ entendeu que o termo “silencioso”, enfatizado na propaganda, não deveria ser entendido como uma afirmação literal, pois, “nas condições tecnológicas da época, em que os condicionadores de ar de gerações anteriores produziam mais ruído, era mero exagero publicitário comparativo, destinado a enaltecer essa característica específica do produto, decorrente de inovação tecnológica e, portanto, o mote da publicidade, em tal contexto, não seria apto, por si, a enganar ou induzir o consumidor a um efetivo engano, mesmo porque este, movido por natural curiosidade, certamente testava o nível de ruído do produto antes da compra”.
Pepsi
Em alguma medida, a questão faz lembrar o paradigmático caso estadunidense Leonard vs. PepsiCo Inc. Na campanha publicitária “Drink Pepsi, Get Stuff“ (“Beba Pepsi, Ganhe Coisas”), os consumidores poderiam juntar pontos ao adquirirem os produtos da Pepsi e trocar por diversos itens da marca.
A propaganda publicitária, amplamente veiculada na televisão aberta em 1995, retratava um adolescente utilizando diversos itens obtidos por meio da troca de pontos. Ao final do comercial, porém, o protagonista chegava à escola pilotando um avião, modelo AV-8 Harrier II, acompanhado da mensagem “7.000.000 de pontos Pepsi” – que, apesar de parecer absurda quando comparada aos demais itens anunciados no comercial, mostrava-se irrisória para a obtenção de um caça militar.
Por entender que a propaganda em questão configuraria uma oferta vinculante, o estudante John Leonard, após gastar US$ 700 mil para acumular os pontos necessários, requereu o avião supostamente anunciado. Pedido foi recusado pela companhia sob a justificativa de que o comercial era apenas um anúncio bem-humorado e fantasioso.
O caso deu origem a um midiático processo judicial, decidido em favor da Pepsi, em 1999. Entre os fundamentos utilizados para afastar o dever da marca de entregar ao consumidor um avião, a decisão assinalou que nenhuma pessoa razoável acreditaria que uma empresa possuiria o sério intuito de ofertar um avião avaliado à época em mais de US$ 30 milhões por apenas US$ 700 mil.
Entendeu tratar-se de um simples caso de exagero publicitário de modo a retratar uma exagerada fantasia adolescente, a quem não se confiaria o controle de uma aeronave utilizada pela Marinha dos Estados Unidos.
Puffing
Além de reconhecerem a legalidade da técnica publicitária do puffing ambos os casos reafirmam que toda peça publicitária deve ser analisada de forma contextualizada, levando em consideração a plausibilidade das informações veiculadas e também o grau de instrução do público-alvo.
A consonância de entendimentos proferidos em diferentes momentos (com aproximadamente 23 anos de diferença) em dois sistemas jurídicos distintos e envolvendo diferentes direitos dos consumidores (dever de informação e vinculação às ofertas) demonstra a necessidade de avaliação casuística da questão.
O puffing é um artifício válido e globalmente utilizado e, por isso, não pode ser confundido com publicidade enganosa ou abusiva como prevista no CDC. Entre aviões, pôneis e exageros, o bom senso deve imperar.
Laura Cunha Gonçalves e Rodrigo Ustárroz Cantali são sócios do Souto Correa Advogados