Fabrício Bertini Pasquot Polido
Um cenário de transição em 2023: quadro de recuperação gradual dos desdobramentos da pandemia da covid-19, crises geopolíticas e adaptação ao cenário de inflação elevada em distintas partes do globo, além de baixo crescimento econômico.
A inteligência artificial passou a ser uma espécie de mantra em vários setores da vida social, com promessas de transformação radical para a automatização de processos e produtividade nas organizações, sem contudo, acenar para qualquer solução de dilemas de um presente já bastante desigual para inovação e desenvolvimento.
Tecnologias digitais e avanços computacionais, aprendizado de máquina e uso de IA generativa, como disseminada pela popularização do ChatGPT também não serão globalmente distribuídos.
Tensão
Existem tensões ainda não solucionadas na cadeia global de produtos semicondutores e microprocessadores, assim como decorrente da enorme dependência tecnológica de países do Sul Global – como o Brasil – de tecnologias emergentes gestadas nos Estados Unidos e na China. Aliás, ora corrida ora guerra entre esses dois gigantes travada também não dão sinais de arrefecimento.
Ao contrário, a cartografia global das novas tecnologias, especialmente as baseadas em IA, ficará dividida entre três grandes blocos – Américas, China e União Europeia, sendo essa última responsável por erigir novas travas regulatórias ao irresistível poder transformador de IA sobre nossas vidas.
E isso importa muito em tempos de resistência ao exercício do poder computacional sobre a humanidade e da sobreposição de nossa existência com os entes autônomos e inteligentes.
Tirando esses detalhes, 2024 promete vários desafios para o direito no encontro com novas tecnologias. Gostaria de enumerar alguns deles:
Inteligência artificial
Além de políticas e iniciativas legislativas ao redor do globo sobre regulamentação do desenvolvimento e uso de IA, na esteira da comoção trazida pela aprovação do Regulamento da União Europeia sobre uso da IA (“IA Act”), estados, empresas e organizações serão pressionados a avançar em discussões qualificadas sobre temas setoriais dentro de IA.
No caso das empresas brasileiras, a situação é ainda mais delicada, na escolha de decidir se antecipar a tendências já presentes na UE (e não se trata de exercício de futurologia!) e internamente estabelecerem políticas de governança em IA que sejam qualitativamente centradas nos eixos humano, ético, de responsabilidade, transparência e prestação de contas ou auditabilidade.
A partir daí surgem várias outras preocupações para legisladores, a propósito do que está sob discussão no PL 2338/2023, que propõe estabelecer marco legal para IA no Brasil:
• Regras para inteligência artificial generativa democratizada
• Regras específicas para auditabilidade em IA, caso a opção seja por não regular aspectos do desenvolvimento, e apenas uso (cadeia final).
• Gerenciamento de confiança, risco e segurança da inteligência artificial (TRiSM)
• Desenvolvimento mediado e/ou auxiliado por inteligência artificial
• Relação entre as aplicações de IA e direitos de usuários, consumidores, trabalhadores, titulares de dados pessoais, criadores e inventores (especialmente nas interfaces com a propriedade intelectual )
• Gestão contínua de exposição a ameaças
• Uso de IA em setores de infraestrutura crítica, como energia, saneamento, transportes, hospitais.
• Crescimento do uso intensivo de soluções automatizadas e assistentes virtuais (chatbots) e dos conflitos com regras do marco legal digital, proteção do consumidor e comércio eletrônico
• Segurança dos dados pessoais e não pessoais – sobretudo nas políticas de segurança cibernética, segurança da informação, e a inclusão de aspectos relativos a IA
Sem dúvida, observaremos maiores pressões vindas do exterior para o Brasil, afetando o ciclo de desenvolvimento e uso de tecnologias e aplicações em IA.
Ela começa com os desdobramentos da “guerra dos chips” e dos microprocessadores de última geração travada entre Estados Unidos e China e a influência sobre Taiwan. No ciclo de implementação e uso de IA, as pressões serão para inclusão de princípios éticos e de responsabilidade, além de obrigações legais específicas para desenvolvedores e usuários, para além de uma abordagem baseada “em risco” ou “em direitos”, como oscilam as versões do IA Act europeu e do PL 2338 no Brasil, por exemplo.
IA e a prática jurídica
IA também veio para ficar no ambiente legal profissional brasileiro, seja por já incorporar soluções existentes anteriormente, como plataformas de pesquisa e seleção de informações jurisprudenciais e doutrinárias, sistematização de processos, acompanhamento de casos em andamento, analítica de jurisprudência e jurimetria.
A novidade está na intensificação do uso de IA generativa, com soluções baseadas em tecnologias análogas ao ChatGPT, da OpenAI, para elaboração de documentos, petições, mas que requerem a participação direta e revisão de advogados.
Também os escritórios tenderão a aplicar ferramentas de experiência de usuário e cliente para pesquisas, relatórios e interação em tempo real, não estando descartadas soluções automatizadas (chatbots) em atendimento a clientes em plataformas.
Escritórios de advocacia 4.0, no entanto, já se integraram a ambientes de trabalho e dados em nuvem, com elevada preocupação em torno de segurança de dados, novas ferramentas de segurança cibernética e privacidade de dados.
Igualmente, dedicam tarefas de seus profissionais para colaboração baseada em nuvem e gerenciamento de documentos, análise acurada de dados por ferramentas de IA analítica e aplicações, programas de verificação de identidade, gestão inteligente de certificados digitais e controle de credenciais de acesso corporativo, produção de relatórios de busca proativa na internet, ferramentas de compliance e IA generativa para produção de documentos processuais em massa.
No entanto, para o Brasil, especificamente, todo tipo de cuidado e prevenção devem ser tomados pelos profissionais do direito na corrida por uso de IA, assim como foi no passado com advento da computação e internet.
O uso de novas tecnologias deve estar em absoluta conformidade com as leis e regulamentos vigentes, como o Estatuto da Advocacia (Lei nº. 8.906/1994), o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e as resoluções, guias e diretrizes da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – esses últimos em função das sensitividade do tratamento de dados pessoais.
Que temas de tecnologia permanecem quentes para 2024
Blockchain, incluindo smart contract
É destacada como uma tendência, especialmente no setor jurídico, com apelo para uso em transações complexas, operações de M&A, aquisições de imóveis, contratos de fornecimento, prestação de serviços etc.
Plataformas e big techs
Regulação por novas leis e regulamentos em serviços digitais, para buscar o controle e repressão de desinformação e fake news, discurso de ódio, conteúdo eleitoralmente ilícito (especialmente com o pleito eleitoral municipal em outubro de 2024) e raspagem de dados, sobretudo em relação às interfaces com IA e proteção de dados.
Realidade aumentada e realidade virtual
Tecnologias trazem o potencial de transformar a forma como as empresas operam e como as pessoas interagem com o mundo digital.
Tecnologias emergentes e mobilidade sustentável
Estímulo ao uso e regulamentação de tecnologias avançadas, também em IA, aplicadas à mobilidade, para favorecer o cumprimento dos ODS e Agenda 2030 das Nações Unidas; além de uso intensivo de drones para segurança pública, logística e transporte.