No jogo da IA, quem entende as regras não é substituído

Não adianta temer a substituição por robôs se ainda não entendemos o que a IA realmente faz
No jogo da IA, quem entende as regras não é substituído - Freepik

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Marcelo Crespo 

Vivemos em tempos de muitas frases de efeito como “a IA vai roubar seu emprego”, “os robôs já estão entre nós” ou “prepare-se para o fim das profissões”. Apesar de provocativas, elas escondem uma verdade mais sutil e mais estratégica: a inteligência artificial não está aqui para nos eliminar. Está aqui para reordenar o jogo. E só continua na partida quem aprende a jogar com as novas regras.


Por que isso importa?

Esse assunto importa porque a inteligência artificial está transformando profundamente o mercado de trabalho, exigindo novas habilidades e redefinindo o papel humano frente à tecnologia. Compreender essas mudanças é essencial para se adaptar, manter a relevância profissional e aproveitar as oportunidades trazidas por essa revolução tecnológica.

A evolução da IA, especialmente na sua forma generativa (capaz de criar textos, imagens, códigos e simular conversas), tem provocado um frenesi global. Mas um dado técnico precisa ser compreendido: ainda estamos longe de uma AGI (Artificial General Intelligence), ou seja, uma IA com consciência, senso crítico e capacidade de resolver qualquer problema de forma autônoma. O que temos são sistemas extremamente eficientes em “simular” inteligência — bons em prever padrões, processar dados em larga escala e acelerar tarefas específicas. Mas sem entender verdadeiramente o que estão fazendo. A antropomorfização da IA está muito mais ligada ao hype de quem a comenta do que, de fato, nas suas capacidades humanoides. 


Para quem esse assunto interessa?

Esse tema interessa a todos que atuam no mercado de trabalho, especialmente profissionais das áreas jurídicas, tecnológicas, criativas e estratégicas. Também é relevante para gestores, educadores e formuladores de políticas públicas que precisam entender como a IA impacta a sociedade e como utilizá-la de forma ética e responsável.

Matemágica

A inteligência que hoje vemos nos aplicativos e plataformas é, na prática, um grande exercício de “adivinhação estatística” baseado em dados passados. Um amigo chama-o de “matemágica”. Eles não pensam. Eles calculam. Não há um “eu” ali. E isso muda tudo quando falamos de futuro do trabalho.

Ao contrário da IA, que calcula, os humanos julgam — porque nossa sabedoria nasce da experiência, da empatia e da ética que nenhum algoritmo é capaz de replicar.

Embora ainda seja cedo para termos certeza, há indícios de que, do ponto de vista econômico, o impacto da IA possa se assemelhar às transformações ocorridas com a informatização nos anos 1990 ou à revolução digital dos anos 2000: não necessariamente resultando no fim dos empregos, mas promovendo mudanças significativas nos perfis profissionais e nas tarefas humanas. De fato, cargos operacionais, repetitivos e baseados apenas em processamento mecânico de informações estão sendo absorvidos. 

Brain rot e economia digital

Porém, isso tem feito com que as funções estratégicas, criativas, analíticas e de coordenação se tornem ainda mais valiosas — e escassas. Até porque existe um fenômeno que se iniciou com o consumo de conteúdos de redes sociais, mas que poderá ser visto em breve em pessoas que fazem uso massivo e sem estratégia da IA: o brain rot (cérebro podre). O cérebro que se acostuma a terceirizar tudo para a IA corre o risco de esquecer como pensar. Da mesma forma que as redes sociais treinaram nosso cérebro para gratificações instantâneas, a IA, mal-usada, reforça esse vício com eficiência implacável.

A economia digital pode estar promovendo o que alguns chamam de “crescimento da produtividade” (Eloundou, Manning, Mishkin e Rock). Um único profissional munido de boas ferramentas de IA consegue produzir mais do que três ou quatro pessoas da década passada. Isso está mudando o perfil das contratações: menos gente para fazer o básico e mais gente preparada para fazer o essencial. E fazer bem. Então, possivelmente o maior perigo da IA não é ela ser mais inteligente que nós — é pararmos de tentar ser.

Desafios

Do ponto de vista jurídico e regulatório, esse cenário traz desafios. Como garantir transparência, justiça e segurança no uso de sistemas algorítmicos que impactam diretamente nossas vidas? Como assegurar que a IA respeitará direitos fundamentais como a privacidade, a igualdade e a não discriminação? O direito, cada vez mais, precisa andar lado a lado com a tecnologia — e ser compreendido por quem a desenvolve e a utiliza. Esse movimento já começou na União Europeia e logo mais chegará ao Brasil, com a aprovação do nosso marco regulatório da IA. 

Nosso maior erro é acreditar que esse é um jogo apenas para especialistas. Não é. A revolução da IA é transversal e atinge a todos: médicos, publicitários, engenheiros, professores e, claro, advogados. Não basta usar a IA. É preciso entender como ela funciona, quais seus limites, quais os riscos e, principalmente, como ele pode potencializar sua atuação. A diferença entre quem vai prosperar e quem ficará para trás está menos no cargo ocupado e mais na mentalidade adotada.

Inteligência aumentada

É aqui que entra a chave da virada: a inteligência aumentada (IA no sentido de intelligence augmentation). A combinação da mente humana — criativa, empática, crítica — com a capacidade técnica das máquinas cria um profissional híbrido, muito mais preparado para lidar com os dilemas da atualidade. 

Governos e empresas ainda estão aprendendo a regular e a implementar soluções baseadas em IA com responsabilidade. Há incertezas jurídicas, riscos éticos e muitos testes em andamento. Mas quem se antecipar, se qualificar e compreender essas dinâmicas, estará em posição de vantagem competitiva nos próximos anos. 

A regra do jogo mudou? Sim, e não adianta temer a substituição por robôs se ainda não entendemos o que a IA realmente faz, o que ela não faz e o mais importante: o que fazemos melhor com ela. O conhecimento técnico, jurídico e econômico sobre essa nova realidade é a moeda mais valiosa deste novo mercado. No jogo da IA, quem entende as regras não é substituído. É promovido.

Marcelo Crespo

Marcelo Crespo é coordenador do curso de direito da ESPM e especialista em direito digital e penal

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